Ano passado, eu assisti pela primeira vez o anime favorito de muitos brasileiros da geração Z durante a infância, o famoso Sakura Card Captors. O resultado não poderia ser outro: me apaixonei à primeira vista, se tornou um de meus animes prediletos e não parei de falar a respeito dele durante um bom tempo. Minha análise a seu respeito é uma das que mais utilizei palavras de amor e gratidão.
Ainda em 2017, foi anunciado que a obra ganharia uma sequência no ano seguinte, 20 anos após sua estreia em 1998. Você imagina a minha reação ao saber dessa notícia. Fiquei tão empolgado quanto com o lançamento de Super Mario Odyssey, ou seja, a um nível exorbitante, ainda mais ao ler que manteriam a equipe de produção do anime original. Pois bem, avançando a 2018, mês passado foi ao ar o último episódio de Sakura Card Captors: Clear Card Arc. A série viveu às altas expectativas?
Infelizmente, a resposta é um definitivo NÃO. Mas antes de soltar os cachorros, vamos aos pontos positivos.....que são poucos. O estúdio Madhouse se esforçou ao máximo para fazer com que essa sequência parecesse ter sido lançada logo após o término da série original. A arte captura perfeitamente a essência do visual agradável e confortante da antecessora, mesmo com todos os processos digitais modernos de colorização, iluminação e efeitos especiais. O design dos personagens é diferente, mas não foge tanto do estilo original e arrisco dizer que consegue ser ainda mais fofo.
Uma de suas maiores virtudes é o fato de contar com diversas composições da trilha sonora do primeiro anime, cuja é uma das minhas favoritas de qualquer animação japonesa. Toda vez que alguma delas tocava, um sorrisão se abria em meu rosto. Algumas peças que tocaram apenas uma única vez originalmente, como essa e essa, retornaram e eu não poderia ter ficado mais feliz ao ouvi-las. As novas aberturas e encerramentos também são deveras cativantes.
Mas é em toda essa similaridade que reside o maior defeito de Clear Card: falta de originalidade. Em uma continuação, você espera ver os personagens enfrentando situações novas e diferentes, ver como estes evoluíram. Ao invés disso, essa sequência optou por um banquete de nostalgia, quase como se fosse um reboot da série original de tamanha similaridade para com esta. Sério, um dos episódios é IDÊNTICO ao ep. 9 da obra original, ao ponto dos personagens lembrarem a cada segundo dos eventos deste.
Cenas do anime original. |
Olha isso, até mesmo os planos são idênticos. Isso deixa de ser referência e passa a ser um roteiro preguiçoso. |
Salvo algumas exceções, todas as "novas" cartas são versões modificadas das cartas anteriores. Temos a carta de água, de fogo, de gelo, espelho, labirinto e por aí vai. Até mesmo as sequências de captura são similares. Parece que essa semelhança tem uma explicação no roteiro, a qual ainda não foi apresentada mesmo após o término da série, mas ainda assim isso não me desce. Não há originalidade na obra, parece que é tudo requentado.
Um pássaro de fogo? Será que a carta Fly ficou esquentadinha? |
E além desse problema das cartas parecidas, a captura delas também deixa muito a desejar. Tudo bem que algumas sequências de captura do anime original eram fracas, mas a grande maioria das capturas de Clear Card se resumem à Sakura falando "olha, é uma carta" e a capturando sem nenhum esforço. Posso contar nos dedos de uma única mão (do Lula) as situações inventivas.
Mas as cartas mágicas são apenas um mero detalhe em Sakura Card Captors se comparadas com o relacionamento entre a Sakura e o Shaoran, o verdadeiro coração da série. Se a execução disso fosse mal sucedida, a sequência iria para o brejo. Infelizmente, também faltou substância em relação a isso. O que nos foi entregue foram momentos fofos entre os dois que dão aquela aquecidinha no coração, mas nada além disso. 80% de suas interações são eles se envergonhando diante um do outro e dizendo como um é especial ao outro. É aquela famosa relação do "chove mas não molha".
Mas se esses momentos entre os dois não te fazem vomitar arco-íris, você é uma pessoa sem coração. |
Não entenda como se eu quisesse que houvesse um avanço no relacionamento deles no sentido de que deveriam se beijar e tals, até porque são crianças, mas a maneira como os dois agem me dá a impressão de que nenhum dos momentos lindos de declaração da série e do segundo filme aconteceram. É como se fossem duas pessoas que se gostam, mas não sabem expressar seus sentimentos. Só lá pelos episódios finais que suas interações começam a ser mais significativas, mas o gosto amargo de mais de 15 episódios não permitiu que isso me impactasse da forma devida.
Momentos lindo assim existem, mas acontecem apenas em situações "extremas". Não há um avanço significativo no relacionamento desse casal. |
A Sakura, sendo a protagonista, pelo menos tem seus momentos de evolução. Ela está mais habilidosa e inteligente do que anteriormente, ainda que desastrada como sempre. São evidentes as transformações que lhe ocorrem ao longo dos episódios, seja em relação à sua personalidade, poderes ou sentimentos. Infelizmente as situações que proporcionam essa evolução não são das mais envolventes.
O Shaoran, que deveria ser um dos protagonistas, não recebe o mesmo tratamento e tem poucos momentos de destaque como um personagem individual – ele depende muito da Sakura para brilhar. Os trechos mais memoráveis dele são os exageradamente fofos com a sua parceira e quando usa novos poderes em batalhas. Fora isso, ele é mostrado agindo de maneira suspeita em diversas situações, escondendo da Sakura algum segredo, o que não combina com a relação que os dois construíram. No geral, sua participação em Clear Card é bastante apagada.
Se os protagonistas sofrem problemas de execução, imagina o resto do elenco? O Touya e o Yukito/Yue são relegados a personagens terciários de tão pouco destaque que lhes é dado. Além de aparecerem por menos de 10 minutos se juntar todos os 22 episódios, há pouquíssimo da bela relação que os dois mantinham na série original. Toda aparição do Touya se resume a ele falando sobre algum poder desconhecido seu que só mostrará "quando for a hora certa". O anime terminou e a hora certa não chegou.
Pra mim esse tipo de segredinho que se estende ao longo dos episódios é um artifício desleixado para tentar capturar a atenção de quem está assistindo. Isso já não me agradava tanto na série original, aí eles decidem repetir a dose nessa sequência tanto com o Touya quanto com o Shaoran. Mais um exemplo da crítica falta de originalidade dos roteiristas.
E a Tomoyo, cara... Que sacanagem o que ela se tornou. Uma de minhas personagens favoritas, virou puro alívio cômico. Grande parte do que eu mais amava no anime original envolvia a Tomoyo, como a amizade linda dela com a Sakura, os conselhos que proporcionava tanto a ela quanto a outras pessoas, as roupas que desenhava, os episódios focados na mocinha de cabelos longos e voz angelical... Ela era tão protagonista quanto o Shaoran.
Em Clear Card, ela é tão irrelevante que não dá nem para chamá-la de secundária. Nos primeiros episódios me deram um falso alarme de que sua participação seria marcante, como no episódio 2 em que ela fica presa com a Sakura em uma carta (com direito a um diálogo lindo da srta. Kinomoto sobre a importância da Tomoyo a ela que fez meu coração explodir de ternura) e no episódio 5 em que vemos pela primeira vez o caderno de estilista dela com diversos dos desenhos de vestidos clássicos. Mal poderia imaginar que a participação dela posteriormente se resumiria a "veste essa roupa, Sakura" e "grava a Sakura pra mim, Kero". Ela que antigamente era a voz da razão de diversos personagens foi reduzida a uma mera piada.
Tomoyo decepcionada com sua representação nessa sequência. |
Ao começo da série, as amigas da Sakura e o Yamazaki apareciam em todo santo episódio. Eu estava gostando desse destaque maior a elas, apesar do fato do Yamazaki contar mentiras em cada episódio estava começando a saturar – na série original era engraçado pois não acontecia com tanta frequência –, mas depois de uns 12 episódios, elas simplesmente desaparecem, mal falam novamente da existência delas.
Apenas uma única personagem subiu no meu conceito em Clear Card: a Meiling. A participação dela durante 5 ou 6 episódios talvez seja o que eu mais tenha gostado nessa série. O episódio 60 do anime original já havia mostrado como ela cresceu com suas experiências e aqui isso é explorado extensivamente. Ela basicamente assume o papel que a Tomoyo desempenhava anteriormente – atua como uma conselheira tanto à Sakura quanto ao Shaoran para fazer com que os dois se aproximem cada vez mais. A maturidade com que lida com todas as situações, sem deixar sua personalidade forte de lado, me fez admirar imensamente essa personagem.
Como toda continuação que se preze, novos personagens foram introduzidos à história: uma menina, seu mordomo e um bicho de pelúcia mágico. Calma aí... Isso não é um tanto familiar? Onde foi que eu vi isso antes?
Ah é. |
Apesar da ausência total de inventividade destes personagens, eles não são cópias exatas do trio misterioso anterior. O amigo da Sakura era o vilão, mas dessa vez o malvado é o mordomo (Yuna D. Kaito) e não a menina que vem a se tornar amiga da protagonista. Ainda assim, a situação é parecidíssima, e o fato do servente ser um poderoso mago que está por trás dos acidentes que a Sakura enfrenta, assim como o Eriol, não ajuda muito.
Mas esse rapaz parece ser um vilão de verdade, diferente do Eriol. Um cara com o poder apelão de parar e voltar o tempo não pode ser uma boa pessoa... |
A menina de quem o Yuna cuida, Akiho Shinomoto, é apenas um peão para executar seus planos, mesmo que ela não saiba. Ela é apenas uma menina fofa e avoada que adora ler. Não posso falar muito além disso, pois não foi mostrado nada além disso. Construção rasa de personagem, assim como a do bicho de pelúcia mágico que não tenho nem o que descrever a seu respeito.
No que a Akiho se destaca? Em ser fofa, eu acho. Só nisso. |
E para fechar esse espetáculo de decepção que foi Clear Card Arc, uma última crítica. O ritmo com que a história avança é massivamente lento, com eventos importantes sendo mostrados apenas ao fim de alguns episódios. O foco de todos eles é no dia-a-dia da Sakura e suas amizades – dessa vez com um destaque grande a seções de culinária, por algum motivo – e às capturas desapontantes das cartas. Sério, um dos episódios – dos últimos, vale notar! – se resume à Sakura e a Akiho lendo uma história infantil para um grupo de crianças.
Se esses momentos incomodam eu que sou fã de animes slice of life, imagina a quem não gosta... |
Mas isso é algo que eu fico em cima da cerca para criticar, porque o ritmo da série original também é lento. Grande parte dos episódios são sobre a vida diária da Sakura e a captura das cartas, com um avanço sutil da trama. Porém, a diferença é que a série original tem 70 episódios para abordar todos os tipos de situações, sejam elas mundanas ou não. Em um anime com apenas 22 episódios, deixar de avançar a trama para mostrar encheção de linguiça que sequer agrega qualquer desenvolvimento aos personagens não é uma ideia das mais inteligentes. Além disso, eu assisti diariamente os episódios da primeira série. Isso me fez perceber que esse não é um anime que funciona ao ser assistido semanalmente por conta dessa lentidão com que tudo é conduzido.
Também fiquei bravo, Sakura. Você não está sozinha. |
O pior é que a série é concluída sem uma conclusão, por mais contraditório que isso soe. Apenas nos dois últimos episódios a trama começa a avançar pra valer e é mostrado mais sobre as intenções do Yuna, mas o anime alcançou o mangá nesse ponto, que ainda está sendo escrito, então poucas respostas são dadas ao término do último episódio. Sabe-se lá quando terá uma 2ª temporada, mas sinceramente, depois dessa decepção, também nem me importo.
O episódio final termina com uma revelação que deixou todos boquiabertos... Só que não. |
No fim das contas, Clear Card Arc é o exemplo perfeito de uma continuação que só foi feita para lucrar em cima de nostalgia, sem nenhuma sustância além disso. O enredo é previsível e desprovido de inspiração, os personagens passaram a ser apenas uma sombra daquilo que eram e falta coração em todo o seu conteúdo, algo que o anime original tinha de sobra. A fofura de Sakura e sua turma pode estar mais forte do que nunca, mas quando esse é o seu grande atrativo, não há prova viva maior de que Sakura Card Captors se tornou apenas um anime moe genérico.
-por Vinicius "vini64" Pires
Leia também minha análise sobre o anime original clicando aqui.
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