quinta-feira, 10 de maio de 2018

Air


Durante seus primeiros anos de produção de séries, a Kyoto Animation se consagrou com adaptações de visual novels da empresa Key, com a mais conhecida dessas sendo Clannad, cuja 2ª temporada (After Story) é tida como um dos animes mais emocionantes de todos os tempos, mas essa aí foi a terceira adaptação do estúdio de um material da Key.

A primeira foi um anime chamado Air, de 2005. Não só é a primeira adaptação de uma visual novel do estúdio como também é um de seus primeiros animes produzidos. A KyoAni é conhecida por seu trabalho visual formidável de animação e direção, mas será que eles se destacavam nisso desde o início?

PERSONAGENS

O protagonista se chama Yukito Kunisaki, um vagante de personalidade séria e um tanto arrogante. Em um determinado dia, ele acorda morto de fome em uma cidade litorânea, sem saber para onde prosseguir. Contudo, ele parece ter uma missão definida – procurar uma garota alada de uma lenda que sua mãe lhe contou antes de morrer.


Após desmaiar de fome em uma praia, ele é acordado por uma garota sorridente de longos cabelos loiros, a Kamio Misuzu. Apesar de ter 16 anos, sua personalidade reflete a de uma criança. Além de ser desastrada, ingênua e apegada àqueles que gosta, ela fala "gao" sempre que faz algo bobo, um som associado a dinossauros, pois é fascinada por estes.


Ela abriga o vagante em sua casa contra a vontade de sua mãe, Haruko Kamio. Ela é uma mulher jovem, um tanto relaxada, que adora se embebedar. Aos poucos ela cria afinidade com o Yukito e fica confiante de que ele pode se tornar uma amizade importante para sua filha, a qual tem certos problemas em se relacionar com outras pessoas.


Durante seu tempo livre, Yukito vaga pela cidade com uma marionete a fim de ganhar dinheiro com um pequeno show em que a manipula com a força do pensamento. Nestes passeios ele conhece outras figuras da cidade, como a alegre Kano Kirishima e a taciturna Tohno Minagi. Essas garotas, junto da Misuzu, têm algo de curioso em comum – todas sonham em criar asas para voar aos céus, assim como a menina que o Yukito procura. Ele começa a passar mais tempo com estas para descobrir se elas tem alguma relação com sua busca.

Kano

Tohno

Outro detalhe é que todas elas são afetadas por alguma força mística desconhecida. A Kano às vezes começa a agir como se estivesse possuída e carrega um misterioso laço amarelo em seu braço que ela não retira nem para dormir. Sua irmã, Hijiri Kirishima, uma doutora, jamais conseguiu entender o motivo desses surtos.


A Tohno fala em um tom monótono, quase como se não sentisse emoções. Sua melhor amiga, Michiru, uma criança agitada que pega implicância com o Yukito, parece ter alguma relação com essa sua personalidade. Ela solta alguns diálogos ambíguos em relação a ela como "Ela é um pedaço de mim".


Já a Misuzu tem sonhos que afetam a maneira como vive, provocando distúrbios físicos e emocionais. Um enorme problema que aflige tanto ela quanto sua mãe é que não consegue fazer amizades. Sempre que está próxima disso, começa a se desesperar e surta.

Todos esses problemas que beiram o sobrenatural chamam a atenção do Yukito, que tenta ajudar as garotas a resolvê-los durante esse longo verão que passa nessa cidade litorânea.


ARTE

Eu iniciei o texto perguntando se o anime se destacaria no departamento visual mesmo sendo um dos primeiros trabalhos do estúdio. Felizmente, a resposta é positiva! Evidentemente não é um trabalho tão refinado quanto o de suas produções futuras, mas é possível ver o quão promissor o estúdio era até mesmo em seus primórdios (sem levar em consideração os anos que apenas fazia trabalho terceirizado).

Essa é a primeira série dirigida pelo Tatsuya Ishihara, um cara que viria a se tornar o principal diretor do estúdio, junto da Naoko Yamada. Seu trabalho aqui é lindo de doer, diria que até melhor que alguns de seus animes posteriores, como The Melancholy of Haruhi Suzumiya (meu review). Diversos enquadramentos dariam ótimos quadros de decoração.




O principal intuito da obra é emocionar e a direção faz um ótimo trabalho em tornar isso possível. Eu não me emocionei tanto por motivos que discutirei mais à frente, mas a composição visual de diversas cenas quase traziam lágrimas aos meus olhos de tanta beleza e sensibilidade, com a direção sendo ajudada por um trabalho de iluminação tão bom quanto. O anime traz algumas das cenas de pôr-do-sol mais encantadoras que já assisti.




O trabalho de animação também se destaca em diversos trechos, sempre bastante expressivo, tanto em relação aos rostos quanto aos movimentos corporais. A animação fluída dos cabelos da Misuzu me deixa perplexo pela complexidade dos movimentos, mas acredito que o momento mais memorável de animação é a cena do episódio 5 em que a garota tem um surto emocional e começa a chorar. Rapaz, é uma expressividade tão forte que chega a arrepiar. É bem capaz que você fique com vontade de chorar junto.




Algo curioso de Air é a sua atmosfera. Não sei se é uma impressão exclusiva minha, mas o anime parece emitir uma aura etérea, sinto como se estivesse dentro de um sonho enquanto o assisto. Um detalhe que reforça isso, além da forte iluminação presente em todas as cenas com sol e lua, é o fato da cidade litorânea em que se passa a história parecer um lugar deserto. Raramente são mostrados personagens ou carros populando o local, as ruas geralmente estão vazias. Como a obra explora temas sobrenaturais, acho que essa sensação mística agrega um valor positivo à experiência.


Se existe um ponto a ser criticado em relação à arte da série são os rostos das personagens. Tudo bem que olhos gigantescos e desproporcionais eram algo comum na época, mas em Air chega a ser incômoda a disposição destes no rosto delas. Com o passar dos episódios eu me acostumei, mas no início não foi uma experiência muito agradável.

Parece que o olho vai explodir e saltar do rosto da personagem.

Também sinto uma falta de profundidade no desenho dos olhos, o que me passa a impressão de que é apenas uma textura de baixa qualidade de um game colada no rosto, ressaltada pelo fato de que são um tanto embaçadas, parecem uma imagem de pequena resolução.

ÁUDIO

A trilha sonora é um caso inusitado, pelo menos em relação aos animes que já assisti, pois é retirada inteiramente da visual novel que serviu de adaptação para a obra, ou seja, é uma animação com músicas de video-game. Aí você pensa, "tá, mas games podem ter músicas iguais a de um filme", só que estamos falando de um jogo de PC do início dos anos 2000! Algumas músicas são em formato MIDI, como era o padrão dessa época, embora outras tenham sido remasterizadas para o anime.

                             
                                        Uma das minhas favoritas. Linda e melancólica.

Isso pode soar como um demérito, mas não é exatamente. Tá certo que algumas composições chegam a ser risíveis quando começam a tocar, pois é esquisito ouvir MIDIs em um anime, mas no geral a trilha sonora ajuda a evocar essa atmosfera etérea que a série proporciona. Tem algumas que me lembram as músicas dos jogos de Pokémon do Game Boy Advance, uma sensação bem confortante.

                             

A música de abertura, Tori no Uta (do japonês "canção do pássaro"), é uma das minhas favoritas de qualquer anime da KyoAni, graças à bela voz da cantora Lia e à batida cativante. As notas iniciais de piano fizeram com que eu quisesse aprender a tocá-la instantaneamente após ouvi-la a primeira vez (já consegui tirar o comecinho dela :D).

                             

A canção de encerramento, Farewell Song (do inglês "canção do adeus"), também é ótima. Eu gosto da simplicidade desse ending: apenas um panorama do horizonte desde o amanhecer até o anoitecer, ocupando apenas aproximadamente 40% da tela. Faz jus à bela música que o acompanha.

                             

Air também traz em sua trilha sonora uma das insert songs mais lindas que já ouvi. Aozora (japonês de "céu azul") é uma música que toca em um momento devastador, mas com uma sonoridade que transmite esperança. Um detalhe que a torna ainda mais emotiva é que a personagem a qual essa canção está atrelada é dublada por uma moça que faleceu ainda jovem alguns anos após o anime, chamada Tomoko Kawakami.

                             

Eu certamente choraria cada vez que a escutasse se esse momento em que a canção toca tivesse sido impactante para mim, mas infelizmente não foi o que aconteceu, o que nos leva ao grande problema de Air...

HISTÓRIA

AVISO: Essa seção contém spoilers! Apenas leia se já tiver assistido à série.

Você deve estar pensando "ué, o certo não seria iniciar o texto com essa seção?", mas é na história de Air que residem seus maiores defeitos. O maior atrativo do anime são seus elementos sobrenaturais, porém estes também são os “agentes do mal”, em decorrência da forma como são explorados. Pouca coisa faz sentido na história. São levantadas muitas perguntas e poucas respostas. Todas as personagens mostradas na abertura são envoltas de mistério, o que chama a atenção, mas as causas disso nunca ficam claras.

A Kano é possuída por um espírito desde que encostou em uma pena mágica quando criança. Ao encontrar este artefato novamente na atualidade, a garota tem uma visão do passado de uma mulher e sua filha que trouxeram maldição a uma aldeia, e logo em seguida se encontra com sua mãe, já falecida, a qual sempre teve vontade de reencontrá-la após que adquirisse asas. Em seguida, sua maldição é removida. Entendeu? Nem eu, muito menos a relação dessa visão do passado com a história da Kano.


Essa mesma pena é a causa do conflito da Tohno. Sua melhor amiga Michiru na realidade é uma manifestação do desejo da mãe da Tohno de ter uma filha que perdeu durante o parto, mas essa mulher não sabe da existência dela e, em vez disso, enxerga a Tohno como Michiru (também nome da filha falecida) e não a reconhece como a irmã da filha que não nasceu. É como se a Tohno não tivesse nascido para ela. Esse é o motivo da garota aparentar não ter emoções. Seria dramático se não fosse tão confuso. E nunca é explicado o que exatamente é essa pena mágica tão poderosa ao ponto de carregar espíritos, possuir pessoas e se manifestar em forma de humanos.

Pelo menos a despedida da Tohno e da Michiru é um dos pontos mais altos do anime. Faltou pouco para me fazer chorar. Direção e ambientação fenomenais.

O único conflito constantemente desenvolvido ao longo dos episódios é o da maldição da Misuzu, mas isso não quer dizer que a execução tenha sido boa. Para começar, o anime vai te dando indícios do que está acontecendo com a menina, até que, no episódio 7, decidem revelar tudo e metralhar um monte de informação pra cima de você. Fica difícil de absorver tudo que é mostrado.

Misuzu corre risco de morte, mas eu passei mais tempo martelando a cabeça tentando enter os motivos do que me preocupando com a vida dela.

No episódio seguinte, é mostrada uma história situada há séculos no passado que aborda a origem dessa maldição, sobre um samurai e uma princesa alada que são perseguidos, pois essa menina é considerada um ser amaldiçoado pelos monges de uma aldeia. Essa quebra de ritmo me incomodou um pouco, porque as coisas estavam começando a se desenvolver no episódio anterior, aí os dois seguintes pulam para uma storyline distinta com outros personagens.


Mas ok, esse arco do passado revelou a origem da maldição que assola a Misuzu: os monges aprisionaram a princesa alada em um ciclo infinito de sofrimento que será carregado consigo em todas as suas reencarnações, cuja mais recente é a Misuzu. Parece profundo, né? O problema é que eu tive que ler isso na internet para dar essa explicação detalhada, pois não fica explícito exatamente o que acontece na série. Dá pra entender que ela é amaldiçoada, mas os detalhes não. Vou ser sincero: eu até estremeci quando li essa descrição na net, pois é algo forte. Um ciclo de sofrimento infinito... Se isso tivesse sido comunicado melhor, eu certamente teria me envolvido mais com a obra.


Só que o pior é o episódio posterior a estes. Ele é basicamente uma recapitulação de todos os anteriores, com uma diferença crucial – o Yukito se tornou um corvo. Wtf? Por que??? No episódio 7 ele tomou uma espadada nas costas do nada, que não é explicada porque os episódios seguintes são os do passado, aí no décimo episódio ele simplesmente virou um corvo e está assistindo a si mesmo interagindo com a Misuzu, com algumas mudanças nos acontecimentos anteriores.


Aí eu fui ler na internet sobre isso e dizem que esse corvo não é o Yukito, mas sim o samurai do passado. Como eu vou deduzir isso? E qual o sentido dele aparecer e interagir com eventos que já haviam acontecido? Infelizmente, os elementos sobrenaturais de Air são explorados de maneira tão ambígua que acaba tornando a experiência pouco interessante. O conteúdo é bom, sem sombra de dúvidas, ele só não é explorado de forma eficiente.

O maior mistério é: por que ela dorme com uma parte do cabelo enrolada naquele quadradinho?

Outro problema são alguns personagens mal explorados. Na abertura, é dado destaque à Kano e à Tohno, com direito aos seus nomes sendo mostrados – antes da Misuzu, inclusive! – a fim de que fiquem na nossa memória. Acontece que elas só aparecem nos 6 primeiros episódios e depois desaparecem! Ambas as duas recebem um arco de dois episódios cada que exploram suas histórias e desenvolvem suas personalidades, supracitados nessa seção, para depois elas serem descartadas da série.

Isso é uma pena, pois essas personagens tinham potencial, especialmente a Tohno. Desde o início ela me cativou com a aura misteriosa que emanava com sua inexpressividade e por falar pausadamente em tom monótono. Depois que descobri o motivo dela ser desse jeito, gostei mais ainda da personagem. Não é nada satisfatório ver a conclusão de seu arco com a vida da menina tendo um recomeço para ela não aparecer mais em nenhum episódio. Eu adoraria ver como seria essa nova fase de sua vida.


Outro personagem que deveria ser relevante é o pai da Misuzu, pois tem participação nos eventos dramáticos do final. Além de aparecer brevemente em apenas dois ou três episódios, nunca é explicado por quê ele largou sua filha com a Haruko, assim como não é sabido o motivo dele querer levá-la de volta depois de anos longe dela. Ele até demonstra preocupação com a menina ao contestar a Haruko de que não estava cuidando dela devidamente. Por que isso repentinamente? Se soubéssemos mais sobre ele, talvez não fosse tudo tão ambíguo.


Um fator potencialmente prejudicial à história talvez seja seu número de episódios. Enquanto as outras adaptações de visual novels da Key, Kanon e Clannad, têm 26 e 49 episódios respectivamente, Air tem apenas 12. Eu não joguei a obra original, mas a julgar por comentários de pessoas que jogaram que explicaram os acontecimentos, fica evidente que o conteúdo é extenso e complexo demais para ser explorado em apenas 12 episódios.

Adoraria que existisse um arco em que levassem esse cachorro chato a um canil.

O pior é que existem dois episódios extras de um OVA chamado Air in Summer, aí você imagina que encontrará algumas respostas ao que não foi explicado. Nada disso! Esses extras são uma extensão do arco que se passa no passado, mostrando mais da jornada do samurai. A ideia é boa, mas a execução é fraquíssima, pois são apenas momentos de comédia com esses personagens, gênero esse que sequer combina direito com a obra quando usado em demasia. A única cena com um pouco de desenvolvimento é uma sobre o passado do samurai, fora isso esses episódios são um desperdício.

Tem até a garota oferecendo seu corpo ao samurai. Que coisa ridícula, hein...

CONCLUSÃO

Para um dos primeiros trabalhos da KyoAni, Air é um grande mérito artístico, especialmente se levar em consideração seu ano de lançamento. Infelizmente o mesmo não pode ser dito para a sua narrativa que faz um mal-uso de elementos sobrenaturais, cheia de ambiguidade e perguntas que não são respondidas ao fim da série. É um caso exemplar de como o visual não consegue salvar uma história mal executada.


-por Vinicius "vini64" Pires


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