sábado, 7 de abril de 2018

Isao Takahata (1935 – 2018)


Essa semana faleceu Isao Takahata, co-fundador do Studio Ghibli e diretor de diversas animações do estúdio. Com 82 anos nas costas, era certo que isso poderia acontecer a qualquer momento, mas ainda assim é uma situação difícil, pois foi uma pessoa que influenciou diretamente a vida de todos que assistiram as suas obras, como é o meu caso. Não tem como não ficar triste.

Infelizmente, o Takahata nunca ganhou um reconhecimento internacional amplo como seu parceiro Hayao Miyazaki, mas sua importância para a indústria da animação é tão grande quanto. Se não fosse por ele ao seu lado, o Studio Ghibli não existiria. O mundo seria um lugar mais triste. Mas a influência do diretor na indústria e na vida das pessoas começou muito antes da criação do estúdio que o tornou mundialmente famoso.


Miyazaki, no sofá, e Takahata em seus 30 anos, quando o Studio Ghibli era apenas um sonho.

O primeiro filme que dirigiu, em 1968, com 33 anos, foi Horus: Prince of the Sun. Embora tenha sido um fracasso comercial na época, a obra hoje é tida como revolucionária por contar com diversas convenções temáticas e visuais que jamais haviam sido vistas em animes antes, como subtextos políticos, personagens imperfeitos com camadas de personalidade e sequências de ação muito mais complexas do que o usual para a época.



Mas o maior feito de Takahata foi mostrar ao mundo que uma animação não precisa de fantasia para funcionar, elemento que até hoje é considerado um requerimento nas animações ocidentais. Citando o próprio homem:

"Muitas animações contam com personagens que superam suas dificuldades usando nada além do poder do amor ou da coragem. Não estou dizendo que fantasia é ruim. Eu gosto de ver trabalhos do gênero de tempos em tempos. Contudo, eu não concordo com a ideia de entreter o público com um personagem fazendo algo incrível que desafia a lógica".
– Isao Takahata, em entrevista ao The Japan Times em 2015
Nos anos 70, ele agraciou o mundo com três séries que eu considero suas verdadeiras obras-primas – Heidi, de 74, Marco, de 76, e Anne of Green Gables, de 79. Esses trabalhos fazem parte de uma coleção de animes chamada World Masterpiece Theater, em que a cada ano era adaptado um livro clássico da literatura ocidental em formato de animação.


Essas obras retratam a vida real, nua e crua, com todas as suas felicidades e infelicidades. Esse foco em situações realistas das séries do WMT é o que as tornam tão tocantes, pois conseguimos nos identificar com os personagens. Eles passam por coisas que vivemos em nossas vidas ou por algo que realmente poderia acontecer com alguém. Você sente empatia por esses personagens ao ponto de que não os enxerga como simples personagens – eles se tornam pessoas próximas de ti, com as quais você compartilha dos mesmo sentimentos de felicidade, satisfação, ansiedade, tristeza, entre diversos outros.


O envolvimento emocional que tive com essas animações não se compara com nenhuma outra. Algumas até chegaram perto, mas nessas eu sentia na pele cada emoção dos personagens como se fossem manifestações da minha alma. Esse vínculo forte não seria possível se não fosse o senso humano de direção do Takahata que, por meio de desenhos, conseguiu representar o dia-a-dia de pessoas no século XIX como se nós estivéssemos vivendo ao lado dessas.

Hoje em dia essas séries são pouco lembradas – exceto no Japão e nos países em que Heidi é um fenômeno até hoje, como nas Filipinas e em alguns lugares da Europa –, mas elas fizeram um sucesso estrondoso no século passado e certamente moldaram a personalidade de muitas pessoas ao redor do mundo. Até mesmo aqui no Brasil, onde foram exibidas no fim da década de 70/começo de 80, podemos encontrar relatos afetivos (aqui e aqui) daqueles que tiveram o privilégio de assistir essas obras-primas na TV. Essas pessoas suplicam por alguma maneira de reassisti-las, pois sabem que são animações completamente singulares, sem nenhuma outra parecida em relação ao que chegou ao Brasil.


A importância de Heidi para o mundo das animações é imensurável. Não fosse o seu sucesso, o World Masterpiece Theater não teria se tornado uma grande franquia no Japão, que trouxe mais de 20 adaptações fantásticas de livros antológicos, por mais que uma boa parcela dessas nem sequer foram legendadas em qualquer língua. Deixo aqui uma citação do Daniel Thomas, dono do Ghibli Blog, talvez o maior entusiasta do trabalho do Takahata que o mundo já viu:

"Mas foi a visão genial do Takahata que fez esse trabalho se tornar real. Foi ele quem quis criar um desenho melodramático que celebrava a vida cotidiana de forma quase documental por conta dos detalhes. Foi ele quem quis ir além das barreiras sentimentais da mídia. Foi ele quem quis estilhaçar o arquétipo de desenho infantil e criar uma verdadeira literatura."


Takahata continuou com essa abordagem mundana ao fundar o Studio Ghibli, mas decidiu tratar de um tema mórbido em seu primeiro filme para o estúdio – guerra e morte. Considerado por muitos seu melhor trabalho, Túmulo dos Vagalumes, de 1988, é um retrato duro e pesado das atrocidades que a guerra traz. Mostra a vida de um adolescente e sua irmã de 4 anos tentando sobreviver ao evento mais desumano da humanidade, a Segunda Guerra Mundial, tendo que lidar com perda de parentes, transtornos psicológicos, desnutrição e outras desgraças.


Eu lembro claramente do impacto que esse filme teve em mim quando o assisti pela primeira vez. Eu fiquei uns 20 minutos chorando após o seu término, depois levantei achando que já tinha superado, mas aí caí de novo na cama e chorei por mais alguns minutos. Nesse dia eu degustei arroz como se fosse a comida mais maravilhosa do mundo.

Relatos como o meu não são difíceis de se encontrar. É só procurar o que as pessoas falam sobre essa obra e verá que ela mexeu com o coração de todas que a assistiram. Até mesmo um dos críticos mais conceituados do cinema, Roger Ebert, considera Túmulo dos Vagalumes um dos melhores filmes de guerra da história. Sim, Isao Takahata conseguiu fazer com que uma ANIMAÇÃO se tornasse um dos melhores filmes de guerra do cinema.


Seu segundo filme para o estúdio é um dos mais únicos da história do cinema de animação, pois é uma obra que clama para ser live-action, mas o Takahata foi lá e disse "não, nós podemos fazer uma animação disso". Estou falando de Only Yesterday, de 1991, um filme que conta a história de uma mulher em seus 20 e tantos anos que decide tirar férias no campo, cansada da vida na cidade. Lá ela passa a se recordar do seu tempo na 5ª série do fundamental e essas memórias começam a guiar o rumo atual da sua vida.


Only Yesterday tem 0% de fantasia. Os Estados Unidos demoraram tanto para engolir a concepção desse filme que ele só foi lançado em 2015 no país. "Onde já se viu uma animação sobre uma mulher adulta refletindo sobre a vida? Pra que uma cena de 5 minutos de uma família comendo um abacaxi? Uma animação que retrata o primeiro período de menstruação? Não! Não faz sentido uma animação disso!"

Porém, o diretor mostrou como uma animação pode contar uma história dessas tão bem quanto um live-action e eu diria que até melhor. Ele fez questão de mudar o traço característico dos rostos dos personagens do estúdio para que suas expressões fossem mais fiéis à realidade. O esmero do Takahata em retratar a vida com todas as suas trivialidades resultou nesse que eu considero seu melhor longa-metragem que, dentre diversos méritos, é quase uma carta de amor à vida rural, com sequências que exalam vida ao ponto de ser quase possível sentir o cheiro das flores durante o amanhecer.


Mas o co-fundador do Studio Ghibli era um diretor versátil que sabia trabalhar com o fantástico também, sem nunca abandonar as raízes humanas que inseria em todas as suas obras. O seu último filme antes de fundar o estúdio, Gauche the Cellist, de 1982, mostra a vida de um violoncelista que vive isolado em uma floresta e é visitado por diversos animais falantes, os quais passam por problemas, assim como ele. Ao longo do filme, o protagonista passa de um rapaz irritado com os animais por estarem atrapalhando seus treinos para alguém que melhora suas habilidades graças às interações com esses bichos. A direção de alguns segmentos musicais da obra são fascinantes, como a da cena abaixo que chega a ser até desconcertante graças à música.



O terceiro filme que dirigiu para o Studio Ghibli, Pom Poko, de 1994, abusa da cultura folclórica japonesa, com a história de um grupo de guaxinins que lutam contra o desmatamento da área em que vivem. Essa obra mostra mais uma qualidade do diretor que é sua habilidade em trabalhar com humor. Pom Poko é um filme divertido, com personagens cômicos, afinal, o principal método de ataque dos guaxinins é usar as suas bolas (sim, AQUELAS bolas). Eles também podem se transformar em humanos, o que proporciona momentos hilários.

Mas ainda assim, o filme nunca perde o seu foco em mostrar a situação crítica do desmatamento nas florestas, o que destrói a vida de diversos animais. Apesar do clima descontraído, existem momentos impactantes que envolvem até mesmo mortes. E talvez seja o filme do estúdio com o maior tempo de diálogos e narração, ao ponto de ser difícil de se acompanhar às vezes, pois o tema central é sério e o roteiro faz o necessário para conscientizar o público.


Sua quarta produção do estúdio, Meus Vizinhos os Yamadas, de 1999, mantém o estilo descontraído de seu último filme – dessa vez sem fantasia – a um nível maior, pois é uma coleção de pequenas histórias de uma família atrapalhada. Pode-se dizer que é um longa puramente de comédia. Esse é um dos poucos trabalhos do estúdio que assisti apenas uma vez e há muito tempo, além de não ter me marcado tanto, então pedi para que uma amiga minha, Isabel Borges, também fã do Takahata, falasse um pouco a seu respeito:

"Esse filme, a meu ver, faz o casamento perfeito de estilo visual, trilha sonora e temática. O aspecto de rascunhos em aquarela, com poucos traços e poucas informações por frame, e a trilha sonora leve e animada da incrível Akiko Yano têm muito a ver com a simplicidade e a alegria quase boba mostradas no dia-a-dia dos Yamadas.

É com essa simplicidade e bom humor que Takahata reflete sobre vários aspectos da vida, em especial da família, como o início da vida independente dos pais, casamento, filhos, diferenças entre gerações, responsabilidades, companheirismo, desentendimentos, adolescência, velhice, enfim.

Para mim, a verdadeira mensagem de Yamadas é: a vida é como é, com seus altos e baixos, e ninguém é capaz de dominá-la realmente; apenas seguimos seu curso, pensando nos nossos objetivos e ao lado de quem importa para nós."


O único filme da carreira do diretor que se assemelha a esse em seu estilo é um que fez quase 2 décadas antes: Jarinko Chie, de 1981. Essa obra é basicamente Yamadas com continuidade entre os eventos, porque também mostra o dia-a-dia de uma família atrapalhada, embora com menos membros e com a diferença de ter um gato falante. Um dos momentos mais hilários é a briga entre dois gatos em que um acaba perdendo as suas bolas (sim, AQUELAS bolas de novo). Não é um de seus trabalhos mais memoráveis, mas traz personagens carismáticos e momentos sentimentais que mostram a versatilidade do diretor em trabalhar com diferentes gêneros e estilos de narrativa.

O que nos leva à sua última obra lançada: O Conto da Princesa Kaguya, de 2013. Por ser um filme mais recente, ele introduziu uma nova geração à sua genialidade em um trabalho que engloba todas as características de suas produções anteriores, unindo realismo a um toque de fantasia e folclore. O estilo de arte minimalista deixou todos boquiabertos com tamanha beleza, basicamente uma pintura japonesa antiga em rolo (emakimono) trazida à vida, as quais o diretor apreciava em demasia, como podem ver neste trecho de uma entrevista sua para a BBC.


Esse filme traz uma de minhas cenas favoritas de qualquer obra do Studio Ghibli, uma em que a Kaguya fica sufocada pela pressão que lhe é colocada e decide fugir do palácio. Sério, essa cena não só me dá calafrios como também me faz lacrimejar de tão intensa que é. Os traços grossos, a expressão quase assustadora em seu rosto, as cores monocromáticas, a trilha sonora… A execução desse momento faz você sentir na alma a dor que a menina estava sentindo.

                      

Vocês não imaginam a minha felicidade ao descobrir que o filme havia sido indicado ao Oscar em 2015. Apesar de saber que seria impossível de vencer do monopólio Disney/Pixar, só de ver o reconhecimento que esse fantástico diretor estava recebendo já era o suficiente. O nome de Isao Takahata cresceu após Kaguya.

Como todos sabemos, a morte de um indivíduo traz divulgação e reconhecimento, então embora ele não esteja mais entre nós, seu trabalho inspirador permeará por toda a eternidade e espero que alcance o máximo de pessoas que puder, pois seus filmes e séries tem o poder de se comunicar com o âmago de um indivíduo.



-por Vinicius "vini64" Pires

Leia também minhas análises sobre as três grandes obras-primas de sua carreira:
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

JefRuizu disse...

O mundo perdeu um ícone. Como ficaremos sem o Isao Takahata?
Ao meu ver o Studio Ghibli deveria fazer um filme contando sua história.