segunda-feira, 26 de setembro de 2016

My Annette (Watashi no Annette)



Depois da experiência negativa que tive com Pollyanna (leia meu artigo), parece que tudo que eu precisava era de um pouco do ar fresco dos Alpes Suíços. É lá onde se passa a animação deste artigo que vos trago: My Annette (Watashi no Annette). Baseada no livro Treasures of the Snow da autora britânica Patricia St. John, a série de 1983 do World Masterpiece Theater nos leva para a pequena vila suíça de Rossinière em 1900, onde conhecemos a história de duas crianças e sua relação de amizade conturbada, porém bela.



PERSONAGENS

A menina que da o título à produção se chama Annette Burnier. Nas séries do World Masterpiece Theater é normal as garotas agirem como meninos, mas essa aqui extrapola neste quesito! Ela não tem medo de afrontar nenhum garoto e desce a porrada em qualquer um que decide torrar o saco dela! De verdade, a Annette tem uma personalidade fortíssima, literalmente. Porém, se isso pode ser considerada uma virtude, um defeito seu é a maneira como é egocêntrica. Só a muito custo essa menina vai botar o braço a torcer e admitir que está errada em determinada situação. Suas decisões levam em consideração apenas os seus sentimentos, ignorando completamente os outros, inclusive pessoas queridas para ela.

Não deixe o rostinho fofo dela te enganar - quando a Annette fica brava,
não tem quem a segure.

Seu melhor amigo é Lucien Morel, um garoto desengonçado que tenta dar o melhor de si em tudo que faz, mas nunca é reconhecido e acaba levando a pior sempre. Enquanto a Annette tem esse problema com seu ego, o Lucien faz de tudo para proporcionar o bem àqueles que ama. A personalidade dos dois é praticamente inversa, tanto que se envolvem em brigas constantemente por besteiras, mas no fundo, os dois se adoram.


A família de Annette é composta por três membros. Pierre Burnier, seu pai, é um homem muito bondoso, calmo e trabalhador. Nunca levanta a voz em nenhum momento e faz de tudo por seus filhos, não importa a situação. Dani é seu irmãozinho, um garotinho levado de 5 anos que adora trens e tem uma doninha de estimação chamada Klaus. Sua mãe deu luz a ele na véspera de Natal, mas sucumbiu logo em seguida por complicações durante o parto, então a Annette se tornou uma mãe para ele. Para ajudar em casa após o nascimento do menino, sua tia-avó Claude vai até Rossinière. Ela é calma como um lago na primavera e é muito religiosa, sempre rezando e tentando ensinar às crianças lições de vida do catolicismo.

Dani e Pierre.

A tia-avó Claude.

Ao longo da série vamos conhecendo diversas personalidades de Rossinière, como os colegas de classe do Lucien e da Annette, cada um com sua peculiaridade (tem até um guri que fala alemão!); o professor deles, o Monsieur Nicolas, que consegue ser amável e rígido ao mesmo tempo; a família do Lucien, com a sua mãe e sua irmã sempre ficando preocupadas com as peripécias do garoto; o misterioso senhor barbudo da floresta, que atua como uma figura inspiradora para o Lucien; entre outros.

Um elenco repleto de personagens carismáticos.

ARTE

Talvez um dos maiores méritos dessa série seja o trabalho dos cenários. Meticulosamente desenhados, as paisagens magníficas dos Alpes Suíços ganham vida e te fazem se sentir no local de tão perfeita que é a execução destas pinturas. É impossível não se sentir aconchegado ao ver as casinhas rústicas e seus interiores, junto dos seus arredores com galinhas, vacas, pastos e montanhas de feno. A maneira como Rossinière é desenhada nunca falha em te encantar, especialmente pelo fato de que vemos as paisagens da vila durante as quatro estações.

Eu já tinha ficado impressionado com a magnificência dos Alpes com a série Heidi (leia meu artigo), mas My Annette aumentou ainda mais o meu fascínio. Ainda nunca viajei para nenhum país, mas é certo que a Suíça será um dos meus primeiros destinos, se não O primeiro.





Essa não é nos Alpes, mas é um desenho magnífico de qualquer forma.

Quanto à animação em geral, não tenho muito a reclamar. Os movimentos são fluídos e o design dos personagens é simplório, sem nada robusto, mas combina perfeitamente com a Suíça rural dos anos 1900. As expressões faciais geralmente são muito bem trabalhadas – você consegue sentir a tristeza ou a felicidade do personagem só pela maneira como seu rosto foi desenhado. Mas tem algumas vezes em que as expressões ficam esquisitas, com os membros do rosto meio desproporcionais e deslocados. Não posso mentir, isso afeta um pouco no impacto de certas situações.




Outros defeitos na animação ocorrem especialmente nas cenas em que um personagem está correndo em um plano fechado em seu rosto ou corpo. Nestas, o cenário de fundo se repete uma ou mais vezes sem trocar de cena por causa do movimento de pan, já que o desenho deste fundo não foi feito em uma folha larga o suficiente para cobrir todo o movimento lateral que o personagem está percorrendo. Essa é uma falha recorrente em diversas animações dos anos 70 e 80, então não pode ser considerado um grande demérito. A série também tem alguns problemas de perspectiva. Por exemplo, os personagens ignoram os relevos do cenário, andando em linha reta por declives. Mas isso só acontece em poucas ocasiões, então não é nada muito grave.

De qualquer jeito, a arte em My Annette é composta por mais acertos do que erros, então deixo aqui para vocês um vídeo que mostra a vila de Rossinière na vida real, comparando com algumas imagens da animação. Me admira um vídeo destes existir, já que essa série não é muito conhecida. Em todo caso, tente não ficar deslumbrado com a beleza natural dos Alpes e suas casinhas de madeira, sejam desenhados ou de verdade – eu garanto que é impossível.


                         

ÁUDIO

A trilha sonora da série não se destaca muito, as composições não são tão memoráveis, mas combinam com tudo o que é mostrado em cena. Esse é o papel de uma trilha sonora, não? Se não se destaca, mas cumpre o seu dever, então não tenho o que reclamar. Talvez a única reclamaçãozinha que eu tenha a fazer é de uma composição meio dramática que finaliza dois episódios, os quais terminam com situações felizes. Qual o sentido de tocar uma música triste em uma ocasião feliz?

Outro detalhe é que mais da metade das composições são variações instrumentais da música de abertura da série. Isso é ruim pra mim? Nem um pouco, pois eu amo a abertura! Acho que é estranho um marmanjo barbudo de 20 anos como eu saber a letra completa de uma musiquinha infantil em que uma garotinha pergunta se o céu azul se encontra em seu coração e se o passarinho azul está no coração de todo mundo. Mas quer saber? Eu não me importo. Eu acho linda essa música, tanto a letra quanto o instrumental. Além do mais, quem a canta é a própria dubladora da Annette!

                   

E falando em dubladoras, a Eiko Yamada, responsável pela voz amável da Anne Shirley, volta nessa série dublando o Lucien. Eu adoro a dublagem da Annette, feita pela talentosa Keiko Han, que também aparece em diversas animações do World Masterpiece Theater, mas o talento da Yamada me impressiona de um jeito sem igual. Claro que o trabalho que fez em Anne of Green Gables é impossível de ser superado, mas a voz que ela dá ao Lucien mostra sua versatilidade como dubladora. A personalidade desajeitada do garoto não poderia ser melhor interpretada por outra pessoa.

Agora uma coisa que me deixou muito aliviado e contente foi o fato de que essa animação sabe respeitar os momentos de silêncio. Se tem uma coisa que aprendi com Hayao Miyazaki e Isao Takahata é que os momentos de silêncio são um dos principais artifícios no desenvolvimento de um personagem. São nesses momentos que percebemos como estes são pessoas como nós, pois é quando seus trejeitos e características são melhores representados. São nessas ocasiões que as reflexões sobre a vida geralmente acontecem. Apesar disso, My Annette não usufrui desse artifício tão bem quanto o Takahata em suas séries, já que me lembro de diversas situações que funcionariam melhor sem música. Mesmo assim, é melhor fazer um uso parcial do silêncio do que não fazê-lo, não é mesmo?

Os produtores entendem que uma cena em que duas crianças discutem seus futuros e depois engajam em uma batalha de feno é muito mais impactante com o som da natureza noturna do que com música.

VALOR SENTIMENTAL

(AVISO: Essa seção contém spoilers da história.)

Após a experiência negativa que tive com as situações superdramatizadas de Pollyanna, fiquei extremamente feliz com o fato de que My Annette mostra situações e reações muito mais realistas, as quais fizeram com que eu me envolvesse emocionalmente com a série. E tudo isso se deve à bela e complexa relação de amizade entre Annette e Lucien.

Como eu havia mencionado na seção PERSONAGENS, a Annette é egoísta e ignora os sentimentos daqueles próximos de si na hora de tomar suas decisões. Foi essa atitude que lançou uma enorme sombra sobre a sua relação com seu melhor amigo, Lucien. Em um fatídico dia, o garoto faz com que o irmãozinho da menina caia de um precipício acidentalmente e quebre a perna. É claro que em uma situação dessas fica difícil de perdoar quem causou o acidente, mas aí é que tá o problema – foi um ACIDENTE! Ao longo dos meses, todos perdoam o Lucien, até mesmo o Dani que teve a perna quebrada, mas a Annette não. Ela guarda tanta mágoa e rancor no coração que acaba jogando fora todos os presentes que o garoto fazia com suas próprias mãos a fim de se reconciliar com sua melhor amiga e seu irmãozinho, a quem ele também sentia muito apreço.

Uma figura esculpida pela vontade do coração de Lucien.

O fato é que a Annette não é uma personagem bidimensional. Se esse fosse um anime convencional, ela agiria dessa maneira vingativa só para cumprir o papel de uma antagonista e pensaria somente em fazer ações maléficas. Mas ela não é assim, pois é uma pessoa de verdade e não somente uma personagem de um desenho animado. Apesar de guardar muito rancor em seu coração, um sentimento de dor a aflige, pois no fundo ela quer perdoar o Lucien. Ela sabe como ele é especial. Mas quando vê a situação do Dani, seu irmãozinho de 5 anos andando de muletas, um turbilhão de sentimentos de raiva, ódio, angústia e inveja faz com que aja por impulso. É assim que ela destrói a estatueta de um cavalo que o Lucien estava entalhando com o seu coração bondoso para participar de uma competição e, acima disso, para presenteá-la à Annette e ao Dani como uma forma de se redimir pelo acidente que tanto atormenta a sua vida. Tudo o que o garoto quer é que seja perdoado e que os dias antigos, dos quais ele lembra com muito apreço, voltem. Mal sabia a Annette que, ao destruir essa estatueta, também estava arrasando o sonho de seu melhor amigo.

Impossível não ver o remorso estampado no rosto de Annette.

Mas é assim que é o ser humano. Cheio de falhas. Ninguém é perfeito. É muito mais fácil odiar do que perdoar. Todos nós sentimos ódio e inveja, todos nós guardamos mágoas e rancor. Todos nós já cometemos pecados. Mas quem aqui nunca se arrependeu de alguma ação errônea cometida? A Annette fica tão devastada quanto o Lucien ao perceber a gravidade de suas ações. Ela tenta contornar esse sofrimento mútuo que os dois compartilham, mas como adquirir a coragem de confessar uma atitude tão horrenda? Como olhar no olho da pessoa depois desse ato? É impossível não sentir empatia pelos dois quando toda essa situação é arquitetada de maneira magistral.


Quando existe um sentimento tão intenso entre duas pessoas, como é o caso da Annette e do Lucien, ambas lutam com todas suas forças internas para que as coisas voltem ao normal. Mas isso leva tempo. Uma reflexão sobre sua vida é necessária. Se isso não acontece, você age por impulso, levando a resultados indesejáveis. Essa série mostra de maneira indefectível uma relação de superação pessoal, na qual o amor verdadeiro entre duas almas lentamente desperta a coragem necessária para que ambas voltem a ficar em paz depois de diversas adversidades.




Pra finalizar essa seção, apesar de não ser nada referente ao valor sentimental da série, gostaria de falar sobre a diferença entre animações infantis japonesas e americanas. Os desenhos do Japão não tratam crianças como se fossem completamente inocentes dos perigos do mundo real. Em que animação americana voltada ao público infantil você vê uma cena com caçadores tratando os animais como se fossem apenas as peças de um jogo e matando uma pomba? Crianças não são burras, americanos. E a maneira como os roteiristas abordam uma solução para esse problema dos caçadores é espetacular, pois parece que saiu diretamente da imaginação de uma criança – um grupo de crianças derrota os malvados com uma avalanche de bolas de neves! Apesar de essa cena em particular fugir um pouco do realismo predominante dessa produção, eu considero isso uma execução impecável de uma série infantil, tratando um assunto sério com a ingenuidade de uma criança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS


My Annette é mais uma série que me faz ter orgulho de ser fã do World Masterpiece Theater, e isso se deve majoritariamente à relação multifacetada entre a Annette e o Lucien, duas pessoas imperfeitas e cheias de falhas, mas que são, assim como nós, humanas. A história de coragem, superação e amor destes dois é uma das mais belas que já tive o prazer de assistir.


-por Vinicius "vini64" Pires

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