Há uns tempos atrás, eu estava me sentindo meio deprimido e pedi uma recomendação de um anime slice of life para me alegrar um pouco. Uma amiga me indicou um tal de Nichijou, o qual li que era um dos mais prestigiados do gênero. Até então, o meu conceito de slice of life eram as animações do World Masterpiece Theater, as quais são 100% a vida real, sem nada de fantasia. Quando o primeiro episódio de Nichijou começa com uma garota robô explodindo, um pedaço de salmão caindo na cabeça de uma menina e um rapaz chegando à escola montado numa cabra, pensei comigo “Ok, isso é diferente...”
A tradução literal de Nichijou é "minha vida comum" e isso descreve exatamente o oposto do que essa série retrata. Acompanhamos a vida de inúmeros personagens passando pelas mais aleatórias e absurdas situações que se possa imaginar por meio de esquetes. Lançado em 2011 pela Kyoto Animation, esse é um dos animes mais únicos do catálogo do estúdio e é considerado um dos mais engraçados de todos os tempos. Será que é tudo isso mesmo?
PERSONAGENS
Conforme disse acima, Nichijou tem um elenco de personagens enorme, os quais todos recebem destaque – apesar da série ter seis principais, os secundários também ganham diversas esquetes individuais. Praticamente todos os personagens são fantásticos e únicos, então me sinto na obrigação de listar grande parte deles aqui.
Talvez quem tenha mais esquetes seja a Yuuko, uma garota destrambelhada, escandalosa e meio burrinha, tão azarada que chega a dar dó. Se algo de errado no mundo está prestes a acontecer, pode ter certeza que vai acontecer com ela. Ainda assim, é extrovertida e está sempre com um sorriso no rosto, tentando alegrar aqueles à sua volta....mesmo que raramente consiga.
A melhor amiga dela é a Mio, uma menina alegre mas bem esquentadinha que se irrita com facilidade. Ela é uma ótima desenhista, mas tem gostos um tanto peculiares e adora desenhar homens em situações.....quentes. Experimenta tentar pegar um desses desenhos dela pra ver se você sai com vida.
Para completar o trio, tem a Mai, uma moça quieta que raramente expressa suas emoções e tem um fascínio por esculturas de Buda. Mas o que ela mais adora fazer é trollar a Yuuko de diversas maneiras, chegando ao ponto de fazê-la ter uma crise existencial.
Perto da escola se encontra o Laboratório Shinonome, lar da cientista Hakase, uma menina prodígio de 8 anos que consegue inventar as mais variadas engenhocas, sabe-se lá como. Apesar disso, dada a sua idade, ela ainda age como uma criança e sempre dá chiliques quando as coisas não saem como quer. Tudo que ela mais adora no mundo são tubarões, a sua maior invenção e comer bobagens.
Sua maior invenção é a Nano, uma garota robô que poderia ser facilmente confundida com uma pessoa comum, não fosse o “parafuso de dar corda” enorme em suas costas que não serve pra nada, mas é fofo, de acordo com a Hakase. Mesmo mecânica, é emotiva e anseia por uma vida normal com relacionamentos e amizades.
Como se esse laboratório já não fosse diferenciado o suficiente, ainda tem um gato falante morando junto delas! O Sakamoto fala com um ar de superioridade devido à sua idade avançada em comparação às garotas e tenta parecer sério, mas seus instintos de gato – como quando vê algo balançando e precisa pegá-lo a todo custo – e a imprevisibilidade desse lar em que vive o impede de manter sua compostura em grande parte das vezes.
O corpo docente da escola das meninas é composto por diversas personalidades interessantes, como a profª Sakurai, extremamente insegura e tímida, não consegue manter uma conversa sem achar que está sendo intrusiva; o profº Takasaki, estrito em sala de aula, mas insano fora dela devido à sua inabilidade em esconder seus sentimentos pela profª Sakurai; a profª Nakamura, uma cientista que quer roubar a Nano a todo custo, mas sempre acaba caindo nas próprias armadilhas e fica constrangida facilmente quando elogiada; o diretor da escola, entusiasta de piadas com trocadilhos e excelente em lutas contra animais silvestres; e o vice-diretor, um senhor de idade desafortunado cujo neto gosta de fazê-lo comer terra.
Os alunos também têm personalidades que se destacam em meio ao mundano ambiente escolar – o Sasahara chega à escola montado numa cabra, tem um mordomo particular e se comporta como um fino príncipe da realeza, apesar de ser de uma família de fazendeiros. É por ele que a Misato Tachibana é apaixonada, uma garota explosiva, literalmente. Apesar de agir como se o odiasse, é só o rapaz dirigir uma palavra a ela que fica vermelha igual um pimentão e o bombardeia com material bélico militar que tira do bolso (sim, ela tira até metralhadoras antiaéreas do bolso).
Um clube icônico da escola é o de igo soccer, um esporte que consiste em fazer embaixadinhas com botões em cima da bola. O fato é que o líder nunca soube que esse esporte existia de fato – ele simplesmente inventou um nome aleatório para criar um clube em que pudesse passar o tempo fazendo outras atividades. Ele é um rapaz rico que chega à escola num jato militar. No clube também participa uma garota loira que raramente fala algo, mas que parece ter uma queda pelo líder. Eles só souberam da existência de igo soccer como um esporte legítimo quando o irmão da profª Sakurai entrou para a escola e sabia praticá-lo.
Esse gesto que o líder faz na abertura sempre me faz rir, não faço ideia do motivo. |
Um dos alunos mais populares é o Nakanojo, graças ao seu moicano que o faz parecer um bad boy, de acordo com uma das amigas da Misato. Mas a verdade é que ele é um rapaz gentil e que não acredita naquilo que não pode ser comprovado cientificamente. A história de seu moicano é um pouco peculiar, assim como a relação com seu pai, um senhor estressado com uma barraquinha de daifuku que faz os outros se vestirem como o doce para atrair consumidores. Daifuku é como uma religião para ele!
Faltou mencionar a Annaka, apelidada de Eh-chan pelos fãs da série devido ao fato das esquetes em que aparece serem focadas em situações que se espanta com frequência e solta um “EEEHHHH??”.
Até mesmo o narrador dos previews dos próximos episódios merece uma menção, pois nunca é o mesmo em nenhum dos 26 episódios! E melhor ainda, ele sempre é representado por um objeto aleatório do episódio em questão, ou seja, o narrador varia entre cubos de madeira, o dedão de um pé, uma bola de futebol, uma carta de baralho, um ovo frito, e a lista vai longe!
HUMOR
O maior “fator de venda” de Nichijou é o seu humor, composto majoritariamente por acontecimentos aleatórios, absurdos e sem noção. É uma série imprevisível, você não consegue imaginar o que vai acontecer em determinada cena. O diretor da escola pode começar a lutar contra um cervo do nada. Um rocambole pode sair do braço de uma garota robô. Um rapaz pode sobreviver a granadas, tiros de metralhadora e bazucas. Um homem pode morrer apenas por tropeçar no próprio pé e cair no chão. Nichijou é uma caixinha de surpresas.
Mas não é só de exagero que o humor da série se sustenta, pois existem diversos momentos calmos e até de silêncio. Alguns tentam fazer jus ao título de “minha vida comum”, como uma esquete em que a Hakase tenta alcançar a cobertura de uma janela pra tampar a luz do sol, mas até a maioria dessas mais calmas são aleatórias. Um exemplo disso é a cena do elevador em que o silêncio permeia por grande parte dela, mas sempre que alguém fala alguma coisa, é algo sem sentido.
Só uma série como Nichijou para fazer uso de enquadramentos tão bizarros assim. |
Um detalhe fantástico é a maneira como algumas esquetes conversam entre si, seja por uma ser sequência direta da outra ou simplesmente por elementos característicos de uma aparecerem em outra. Tem uma esquete em que um cara de bicicleta é acertado por um taco e o veículo sai desgovernado pela rua. Algumas esquetes depois, essa mesma bicicleta aparece rapidamente e esmaga o sorvete que uma garota havia derrubado no chão. Esse é um exemplo de uma ligação direta entre dois trechos, mas têm alguns mais sutis que aparecem de segundo plano no cenário, como a Mai acariciando o corvo falante depois que ele sai da casa da Hakase, e a Misato correndo com a “armadura de ervilha” antes da esquete que ela a usa.
Além das esquetes focadas em personagens específicos, também existem os quadros temáticos, como o Pensamentos Curtos, que apresenta uma frase reflexiva sem sentido junta de uma cena que não tem nada a ver com o pensamento; o Helvetica Standard, que consegue aumentar ainda mais o nonsense da série mostrando acontecimentos sem pé nem cabeça; o Coisas que adoramos, em que a Yuuko e a Mio mostram....coisas que elas adoram; e o Like Love, meu favorito, no qual são retratados pequenos exemplos de afetividade, sem muita absurdidade.
"Eu desenhei isso enquanto escutava jazz". |
O problema do humor de Nichijou é que ele é muito hit or miss, ou seja, em alguns momentos você vai rir pra caramba e em outros vai ficar “uéee...”, até porque não é todo mundo que gosta desse estilo de comédia nonsense. Tem diversas piadas que percebo que são específicas da cultura japonesa, então essas acabam perdendo o sentido na tradução e você fica com um ponto de interrogação na cabeça. Algumas esquetes escandalosas demais também não me agradam tanto, como algumas da Yuuko, mas no geral eu acredito que o humor é mais “hit” do que “miss”. Direto eu reassisto alguns trechos que sempre me fazem rir bastante.
ARTE
Apesar do humor de Nichijou ser o aspecto que mais receba prestígio, eu acredito que é no departamento artístico onde a obra mais brilha. Eu o considero um dos animes mais únicos da história, levando em consideração apenas seu visual. Tudo começa com a distribuição de cores de tonalidades leves e os cenários com estética artesanal (feito à mão), apesar de terem sido feitos digitalmente. Mesmo com tantas coisas absurdas acontecendo em cena, assistir a essa série nunca deixa de ser uma experiência agradável graças à sua arte.
Outro fator crucial é o trabalho de animação formidável que abusa da expressividade e exagero, com cenas em que uma mordida de cachorro ou um furo no dedo causam explosões que destroem planetas. Diversos acontecimentos mudam drasticamente o traço dos personagens, especialmente nas reações de espanto, raiva e surpresa.
E não é só em abundância que a animação de Nichijou se destaca, pois a ausência de expressividade também é devidamente explorada. Tem momentos em que a expressão dos personagens fica completamente sem vida quando eles se decepcionam ou algo ridículo acontece. As vezes eles até perdem suas cores e ficam imóveis. Não há nada mais cômico do que a Yuuko numa montanha russa com essa expressão no rosto:
Falando em personagens, o character design também contribui para a singularidade desse anime em relação aos demais. Você pode até pesquisar obras com um traço similar, mas garanto que encontrará poucas. Além da variedade enorme de expressões faciais, os personagens são mostrados em diversas situações que usam roupas diferentes e eu adoro esse tipo de preciosismo, pois nos ajuda a enxergá-los como pessoas normais, mesmo com tanta absurdidade acontecendo ao seu redor.
Outro diferencial importante é que Nichijou não tem nenhum tipo de fanservice – nenhuma personagem é desenhada com atributos que as tornem sexualmente atraentes e não há sequer uma cena que tente explorá-las nesse sentido, como as infames cenas de praia. Isso é um baita mérito entre os animes desse estúdio e até mesmo desse milênio!
ÁUDIO
Em uma produção de comédia dessas, talvez a pessoa pense que a trilha sonora ideal seja com instrumentos sintetizados e fazendo uso de sons peculiares produzidos por um teclado, para ressaltar as aleatoriedades mostradas. Mas não! A trilha de Nichijou é quase que 100% orquestrada! A sonoridade é similar aos desenhos de comédia da época da Hanna-Barbera e soa um tanto dissonante, mas é essa dissonância que faz com que as músicas se encaixem perfeitamente nas cenas. Não faz sentido, né? Claro que não! É de Nichijou que estamos falando!
O mais interessante é que o compositor da trilha, Yuuji Nomi, é o mesmo da obra-prima mais importante da minha vida, Sussurros do Coração, inclusive é possível notar semelhanças entre certas peças de ambas as trilha sonoras. Ele participou de pouquíssimos animes, mas é um compositor fantástico, então o fato de Nichijou ser movido por suas músicas agrega um valor enorme à obra.
Mas se tem algo na música desse anime que eu gosto mais do que a trilha sonora, são as aberturas. Já digo logo de cara – as aberturas de Nichijou só perdem pra de Evangelion como as melhores aberturas de anime da história. Com seu ritmo frenético, elas sintetizam impecavelmente toda a essência da obra. O mais interessante é que TUDO mostrado nelas são referências a diversas esquetes, então é divertido reassisti-las a cada episódio e ir percebendo as referências.
Além da parte visual, as músicas das aberturas são demasiadamente cativantes, não canso de ouvi-las. Eu fiquei abismado quando descobri que o compositor e cantor delas, Hyadain, é um cara que fazia remixes de músicas de video-game na década passada e fez um enorme sucesso com essa canção aqui. Percebe-se que ele não abandonou suas origens com o trecho chiptune da primeira abertura e o efeito sonoro da moeda de Super Mario na segunda. Mas de verdade, não sei se eu conseguiria manter minha compostura se um dia as ouvisse tocando em uma festa. Dançaria loucamente até cair no chão.
Tem um aspecto de áudio que eu raramente menciono em meus textos, apenas se ele se destaca demais, que é a sonorização, mas sinto que preciso elogiar a de Nichijou por seus efeitos sonoros, em especial aqueles usados quando um personagem está tímido ou constrangido. Além de uma representação visual por meio de alguns rabiscos em volta da cabeça, estes são acompanhados de uns efeitinhos que não consigo descrever, mas que adoro num nível absurdo. Só de ouvir esses sonzinhos eu já abria um sorriso no rosto. Deixo a cena abaixo para representar melhor isso:
E não poderia fechar essa seção sem falar do trabalho de dublagem fenomenal (japonês, a série não foi dublada em português). Em uma animação normal, os dubladores precisam tomar cuidado para não exagerar na atuação e consequentemente soar forçado e pouco natural. Em Nichijou esse problema foi dizimado – o elenco exagerou até não poder mais em suas atuações e tenho certeza que se alguém perguntar “qual seu melhor trabalho de dublagem”, muitos deles responderão “Nichijou”.
Destaques para a voz deliciosa de sussurro da Mai, o engrish forçado do professor do profº Takasaki (NO FUTUREEE!!), os monólogos internos extrovertidos da introvertida profª Nakamura, a voz insegura e fofa da tímida profª Sakurai e a voz do Sakamoto que....acabaram meus adjetivos para complementar :v
CONCLUSÃO
Nichijou é uma obra única entre as animações japonesas, tanto por seu humor quanto por seu mérito artístico. Apesar do estilo de comédia exagerado não ser para todos e falhar em determinados momentos, acho difícil alguém não se divertir com essa série. Só se a pessoa estava montando uma torre de cartas e aí um lustre caiu em cima dela e destruiu tudo. Daí eu entendo.
-por Vinicius "vini64" Pires
Leia também minhas outras análises sobre animes da Kyoto Animation:
- Air (Tatsuya Ishihara, 2005)
- The Melancholy of Haruhi Suzumiya (Tatsuya Ishihara, 2006)
- Lucky Star (Yasuhiro Takemoto, 2007)
- K-ON! (Naoko Yamada, 2009)
- The Disappearance of Haruhi Suzumiya (Tatsuya Ishihara, 2010)
- Chuunibyou demo Koi ga Shitai! (Tatsuya Ishihara, 2012)
- Tamako Market / Tamako Love Story (Naoko Yamada, 2013)
- Koe no Katachi (Naoko Yamada, 2016)
- Miss Kobayashi's Dragon Maid (Yasuhiro Takemoto, 2017)