domingo, 20 de janeiro de 2019

DISSECANDO CENAS - O advento de Naoko Yamada (Clannad After Story, ep. 3)


Todo animador precisa escalar uma íngreme ladeira até chegar ao tão desejado posto de diretor. Foi assim com todos os grandes nomes. Mas um desses nomes teve uma escalada consideravelmente mais rápida que o normal. Me refiro à Naoko Yamada, a diretora de anime mais prestigiada dos últimos tempos e uma das minhas favoritas, junto do Hayao Miyazaki e do Isao Takahata do Studio Ghibli.

De acordo com o Anime News Network, a Yamada participou apenas de um trabalho como in-betweener, cargo atribuído aos iniciantes, em 2004. Sua próxima participação, em 2005, já foi como animadora chave, algo que diz muito sobre o seu trabalho. Em 2007, dirigiu e fez o storyboard de dois episódios de Clannad. Em 2008, na 2ª temporada da série, esse número aumentou para cinco. No ano seguinte, com apenas 5 anos de carreira, os chefões da Kyoto Animation decidiram promovê-la e confiar a direção de uma série inteira a essa jovem moça de 23 anos. O que viria a seguir seria um trabalho que revolucionaria a indústria dos animes por completo – o grande fenômeno K-ON! (meu review).



É uma história de evolução sem precedentes no mundo das animações japonesas. Mas o que fez com que a Yamada se destacasse tanto dentro do estúdio? Para isso, vamos dar uma olhada no terceiro episódio de Clannad After Story, um dos que foi dirigido e storyboarded (foi mal, não existe tradução pra esse termo) por ela. Conforme falei no parágrafo acima, ela fez esse mesmo trabalho em dois capítulos da 1ª temporada, mas seu estilo característico não é tão evidente nestes, diferente do episódio que abordarei a seguir, em que a diretora pareceu ter liberdade criativa total sobre a produção.

O que ela tem de fofa também tem de puro talento.

O episódio em questão é o segundo de um arco reservado ao Sunohara e à sua irmã Mei, composto por três episódios ao todo. Quando assisti o primeiro deles, fiquei relutante, pois esse personagem é o mais chatinho de Clannad. É o alívio cômico da obra, uma figura que só serve para fazer piadas e trazer momentos engraçadinhos, os quais perdem a graça relativamente cedo já que se repetem com frequência. Não imaginava como um arco só dele conseguiria me agradar.

Mas aí é que tá a pegada: não é um arco só dele. A sua irmãzinha Mei também é um ponto chave. Ela está preocupada com o futuro do seu irmão vagabundo e não sabe o que fazer para ajudá-lo. A solução que o seu amigo Okazaki encontra é a de falsificar um namoro, pois assim a Mei acreditaria que uma namorada colocaria seu irmão nos trilhos. O primeiro episódio do arco se resume ao Sunohara em sua busca por uma garota que tope participar disso, falhando miseravelmente até que encontra uma pessoa improvável que se sujeita a ajudá-lo – a mãe da Nagisa, Sanae! É um episódio divertido e bobinho, a cara do Sunohara.

Sunohara ao fundo abobado com a beleza de sua "nova namorada"

Só que o panorama muda no segundo episódio. Em vez dessa namorada falsa melhorar a situação, ela só piorou, pois o Sunohara começou a levar essa brincadeira a sério e passou a ter apenas olhos à Sanae. Em um determinado momento, o grupo se depara com uma garotinha sofrendo bullying e a Mei fica incomodada, pois também sofreu disso na infância, mas era sempre salva por seu irmão. Ela imaginou que ele ajudaria a criança como fazia no passado, mas apenas olhou com desdém. Alguns segundos depois, o irmão dessa menina surge e a socorre, e então o grupo os escolta para casa. Sunohara fica emburrado o tempo inteiro, pois essa situação havia estragado o encontro dele com a sua "nova namorada". Fica evidente à Mei que seu irmão havia se tornado uma pessoa ruim e ela queria reverter isso.

Más lembranças do passado ocorrem à menina ao presenciar essa cena.

Sunohara se alegra ao ser agradado pela Sanae, enquanto a Mei sente desconforto ao ver seu irmão se importando com frivolidades e ignorando causas sérias.

Clannad é uma obra feita para te fazer chorar. Todo arco tem um drama, uma história triste e faz uso de diversos artifícios para arrancar alguma lágrima de ti. Contudo, comigo o anime falhou nessa missão, ao menos em relação à 1ª temporada. Eu gostei dos arcos, mas não me emocionei em nenhum deles. Sequer me importei muito com os sentimentos dos personagens. Sabe aquele sentimento de empatia que descrevo nas minhas análises dos animes do World Masterpiece Theater? Não me ocorreu em nenhum momento, porque grande parte dos arcos fazem uso de um melodrama forçado que não me apetece.

Porém, no episódio 3 de After Story, isso mudou. O sentimento de empatia que a obra tanto tentava descer guela abaixo finalmente apareceu. E foi graças a uma abordagem completamente oposta ao que a série vinha tentando fazer. Uma abordagem que te coloca de fato na pele do personagem, que proporciona uma sensação de intimidade de quem está assistindo para com os personagens de forma sutil. Se você assistiu K-ON!, Tamako Love Story (meu review) ou Koe no Katachi (meu review), isso deve soar familiar. Me refiro à abordagem única da diretora Naoko Yamada.

Um plano detalhe característico dos trabalhos da diretora, que transmite a inquietude do rapaz diante de uma situação complicada por meio de leves movimentos dos dedos.

Não há forma melhor de descrever tal abordagem do que com uma cena, certo? Nela vemos uma expressividade enorme na Mei, porém delicada e repleta de nuances, com leves alterações no olhar, na boca e inclinações na cabeça. Em seguida ela recosta o queixo nos joelhos e mexe um de seus pés, movimento que é mostrado em detalhe e demonstra melhor do que qualquer outro os sentimentos de insegurança e desolação que a assolam.




Cenas assim são encontradas ao longo de todo o episódio – nos momentos propensos, claro. Esse foco em linguagem corporal é a característica principal do estilo de direção da Yamada. Ela é capaz de comunicar todas as emoções dos personagens sem qualquer diálogo, uma habilidade que se aprimorou ao longo de sua carreira e chegou ao ápice com seu filme mais recente, Liz to Aoi Tori (review em breve), uma obra em que cada plano carrega consigo uma mensagem, um sentimento. Inclusive, um dos planos desse episódio é extremamente similar a um desse filme, apesar da diferença de uma década entre os dois trabalhos. É a prova viva de que a Yamada sempre teve essa sensibilidade singular que faz dela a diretora de animações mais humana da história.


Nos planos de Liz to Aoi Tori, as linhas orgânicas do cabelo da personagem deixam evidente a evolução que tivemos em 10 anos em relação à forma como cabelos são desenhados, em que podemos ver como até os fios são desenhados e animados de forma individual.

A cena que compartilhei da Mei insegura é um exemplo primordial de como os rostos são desenhados de forma delicadamente expressiva, mas até em planos com pouco movimento/animação eles são assim, como no exemplo a seguir, em que a diretora estende a duração de planos como este para que seja possível absorver o que se passa na mente da personagem. Um detalhe interessante é a forma como a boca é desenhada, em que é possível ver os dentes, algo pouco comum em cenas nas quais personagens observam algo.


O fato de ser possível vê-los muda completamente o que o semblante dela quer comunicar. Se a boca fosse desenhada nesse mesmo formato, mas sem os dentes, ou fechada, passaria a impressão de que está surpresa e nada mais. Já a inclusão dos dentes comunica uma complexidade em sua expressão, como se sentisse um desconforto com a cena presenciada. Indica uma reflexividade maior da personagem diante da situação. Pode parecer óbvio, mas é uma técnica pouquíssimo explorada na maioria dos animes.

E vemos isso novamente aqui, com uma expressão de incerteza sucedida por um sorriso afável de afirmação.

E ainda em relação à abordagem de linguagem corporal, esse episódio tem algo que é encontrado em diversos trabalhos da KyoAni – planos de personagens mexendo no cabelo. Eu sou fascinado pela fluidez com que o estúdio anima os movimentos de cabelo. No caso desse episódio, é algo mais sutil, mas que cumpre a função de transmitir o transtorno da garota. Já dá pra perceber como tentaram animar os movimentos do cabelo da forma mais orgânica possível, outra técnica aprimorada ao passar dos anos, que atingiu o seu ápice na famosa cena de Hibike! Euphonium em que a Reina sorri à Kumiko enquanto arruma o seu cabelo.

Clannad After Story, ep. 3 (2008)

K-ON!!, ep. 16 (2010)

Hibike! Euphonium, ep. 5 (2015)

Mas a Yamada também sabe como dirigir situações fofas e cômicas. Uma pessoa que a ajudou a se destacar nessa produção foi a Yukiko Horiguchi, animadora chave e diretora de animação do episódio. Ela é outro membro chave da equipe de K-ON!, tendo exercido essas mesmas funções, além de ter feito o adorável character design, certamente o maior selling point da obra.

A participação dela neste episódio tornou o design dos personagens visivelmente distinto dos demais, mas sem fugir tanto do padrão para não causar estranhamento. É só comparar os rostos e os olhos desse episódio com os do anterior e ver como são ligeiramente mais arredondados. Isso os torna mais maleáveis, mais exageradamente expressivos e suscetíveis a deformações estilísticas, uma característica do estilo de animação da Horiguchi.

Comparação entre os episódios 1 e 3 de After Story.

Os movimentos deles são um tanto bouncy e se contorcem como se fossem de borracha em certas ocasiões. Às vezes parecem até uma ameba de tanto que seus desenhos foram estilizados. Acredito que essa seja a origem do termo moe blob. Todas essas são características intrínsecas do estilo de K-ON!, então fica fácil de entender porque o estúdio decidiu colocar a Horiguchi junto da Yamada na equipe da obra.

Dois exemplos das deformações características da Horiguchi. Os braços da Mei até se tornam cotocos na primeira imagem. A expressão do Sunohara na segunda imagem seria inviável com o design padrão dos personagens, assim como a da Sanae na primeira.

Pra ficar mais fácil ainda de entender é só assistir a cena do Tomoya com a Mei no centro da cidade. K-ON! é cheio de situações que te proporcionam uma overdose de fofura – o mesmo pode ser dito para a forma como a Mei age nessa cena, fingindo que é a irmãzinha do Tomoya. A forma como é animada e seu rosto desenhado é de amolecer o coração de qualquer um. A participação da Kyou, Ryou e Kotomi nessa cena também não poderia ser mais moe, já que elas saem correndo esbanjando fofura em suas animações e expressões depois de deduzirem que o Tomoya sente fetiche por irmãzinhas.



Outro detalhe incrível é a integração dos personagens de background às cenas. Isso é feito com frequência em Clannad, mas não ao nível desse episódio. Em uma cena, o Tomoya e o Sunohara andam pelo corredor, quando o segundo rapaz decide comentar sobre o seu futuro. Logo antes disso, duas amigas correm uma em direção a outra atrás dele. A cena corta para os devaneios do seu futuro, se imaginando em diversas profissões, mas ele está acompanhado dessas duas garotas, que o elogiam a cada comentário que faz, como se fossem fanáticas. São duas personagens irrelevantes que nunca apareceram antes na série e isso torna o uso delas nessa cena ainda mais incrível. É uma cena que parece ter sido retirada diretamente de K-ON!.

Logo na sequência, o Sunohara solta um baita gritão ao Tomoya por conta de uma brincadeira tosca e uma transeunte ao lado deles se assusta. Não só isso, mas é possível ver mudanças na direção do seu olhar ao longo do breve trecho em que aparece. Esse tipo de detalhe é característico do estilo da Yamada, algo que felizmente se disseminou até nos trabalhos do estúdio não dirigidos por ela. É uma preocupação em popular o cenário com personagens e interações que dão vida às cenas. A cena com esses dois trechos pode ser assistida logo abaixo:



Não é difícil de perceber o porquê da ascensão veloz da Naoko Yamada. Em apenas 23 minutos, ela mostrou como lidar delicadamente com emoções de forma com que o público sinta exatamente o que se passa na cabeça de um personagem e arquitetou inventivamente situações divertidas que fazem uso não só dos personagens ao seu dispor, mas também do cenário e de figurantes inseridos neste. Esse episódio é como um piloto das habilidades da diretora que veríamos serem refinadas ao longo dos próximos anos.

Também veríamos muito mais moe ao longo dos anos <3

-por Vinicius "vini64" Pires


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