Antigamente eu tinha o costume de assistir diversos filmes por ano. De uns anos pra cá, perdi esse costume. Culpa dos animes. Malditos chineses! Mas esse ano quero voltar com isso, assim como disse na minha última premiação, afinal, eu me considero um grande fã de cinema. Portanto, decidi começar com uma trilogia muito comentada nos últimos tempos, graças ao sucesso do segundo filme em 2017. Me refiro aos três filmes do diretor M. Night Shyamalan, Corpo Fechado, Fragmentado e Vidro.
Acho que a melhor expressão que descreve esse diretor é "8 ou 80", porque seus filmes ou são ótimos ou são uma merda. Felizmente, esses três filmes se encaixam nos ótimos (salvo uma exceção). Assisti aos dois primeiros em um dia e no dia seguinte fui assistir ao terceiro no cinema, de tanto que curti. É uma das trilogias mais intrigantes do cinema pelo fato dos dois primeiros filmes não terem qualquer conexão aparente entre si até chegar à cena final do segundo deles.
AVISO: Esse texto contém spoilers da trilogia inteira! Apenas leia se tiver assistido todos os filmes.
O primeiro filme, Corpo Fechado, foi lançado em 2000. Ele mostra a história de David Dunn, interpretado por Bruce Willis, o único sobrevivente de um acidente fatal de trem que matou mais de 170 pessoas. Esse acontecimento milagroso chama a atenção de um homem chamado Elijah Price (Samuel L. Jackson, motherfucker), um especialista em HQs de super-heróis que acredita na existência destes na vida real e crê que o sr. Dunn seja um deles por ter sobrevivido ao acidente.
O sr. Price tem uma rara doença que faz com que seus ossos se quebrem com facilidade. Qualquer soquinho que der nele, os ossos quebram igual vidro. Isso o rendeu o apelido de Mr. Glass (Sr. Vidro). Ao ver que o sr. Dunn sobreviveu ao acidente fatal, Price acredita que ele seja o seu oposto, ou seja, um cara que não consegue se machucar. Basicamente um requisito a um super-herói. Ele persuade o sr. Dunn a notar características que o classifiquem como um verdadeiro herói, como o fato de nunca ter adoecido e de ter a habilidade de perceber quais as pessoas com más intenções em seu trabalho como segurança de um estádio de futebol.
Apesar de relutante com a ideia de existirem heróis na vida real, Dunn aos poucos passa a perceber como o sr. Glass estava certo. Ele não só é invencível como também tem uma força imensurável, além de poder enxergar todas as ações hediondas de pessoas que esbarram nele. Contudo, assim como todo super-herói, ele tem uma fraqueza – a água. Devido a uma experiência traumatizante na piscina durante a infância, o Dunn se afoga com facilidade.
Ao fim do filme, o novo herói vai às ruas para punir aqueles que cometeram crimes, como um vigilante. Seu primeiro ato heroico é o de salvar uma família de um estuprador. O seu filho é um que sempre acreditou na possibilidade de seu pai ser um herói, então quando o Dunn chega com um jornal com a notícia de uma misteriosa figura de capa de chuva que salvou uma família, o entrega ao seu filho e sussurra "você estava certo", fica difícil de não se emocionar. É um momento lindo e gratificante.
Eu imaginei que o filme terminaria aí. Seria um final perfeito. Mas não. Ah, mas não mesmo. Na cena final, o Dunn se encontra com o sr. Glass para agradecê-lo por tê-lo feito perceber o seu potencial de herói. Ao apertar a mão dele, o inconcebível lhe ocorre. Dunn enxerga todas as atrocidades que ele fez em toda a vida. O Price foi quem fez acontecer o acidente de trem que matou mais de 170 pessoas, além de inúmeros outros assassinatos em massa, tudo para que um sobrevivente milagroso aparecesse. Dunn é o super-herói que tanto esperava. Glass é o vilão. Um plot twist fenomenal que me pegou completamente desprevenido.
Corpo Fechado pode ser considerado o primeiro (e único?) filme de herói realista, pois nenhum de seus elementos fogem tanto de nossa realidade, apenas dão uma exageradinha. A força sobrehumana e a habilidade extrassensorial do Dunn não assumem proporções épicas como em HQs - ele é apenas um segurança mais forte que o normal com um tato excepcional para desvendar malfeitores. O mesmo pode ser dito ao sr. Glass, apenas um homem extremamente inteligente e observador que não se importa com o sofrimento alheio de tanto que já sofreu na vida. A fraqueza de ambos também é algo mundano.
Esse realismo torna mais palpável o conceito de super-heróis. A principal mensagem da obra é a de que qualquer pessoa pode ser o herói da sua própria história. Se você tem alguma habilidade que pode contribuir para a felicidade de qualquer pessoa, seja algo maior como proteger algum indefeso ou algo pequeno como fazer um desenho que emocione pessoas, você pode ser considerado um herói.
Um aspecto que tornou a história mais envolvente e pessoal pra mim foi a direção, com um uso proeminente de planos um tanto tremidos com a câmera na mão, assim como os diversos planos longos focados nos personagens. Um dos planos iniciais, do Dunn conversando com a mulher no trem, dura uns 4 minutos sem qualquer corte, com a câmera indo e voltando por trás dos bancos, mostrando os personagens nos espaços entre os bancos. A edição também é crucial nessa abordagem mais pessoal, pois é pouco dinâmica, o que ajuda a absorver melhor cada situação passada pelos personagens.
Depois de 17 anos, em 2017, foi lançado Fragmentado. Assim como disse anteriormente, é impossível deduzir que essa é uma sequência ao Corpo Fechado até chegar à cena final em que o personagem do Bruce Willis aparece, porque não há qualquer ligação ou semelhança entre os dois filmes, nem mesmo em questão de estilo. Enquanto o filme de 2000 é um suspense leve com um pouco de drama, esse aqui é totalmente suspense psicológico com algumas pitadas de terror.
Nem mesmo a direção do filme remete em nada ao anterior, visto que ele é majoritariamente composto por planos de câmera fixa com poucos movimentos e com um dinamismo maior nos cortes. Mas o fato de ser diferente não quer dizer que seja ruim. Muito pelo contrário. Enquanto Corpo Fechado te envolve com a história de um homem que pode se tornar um super-herói na vida real, Fragmentado te envolve de inquietação com o drama de três garotas mantidas em cativeiro por um rapaz com 23 personalidades em um único corpo que pretende usá-las como sacrifício para a sua temida 24ª personalidade.
Três das personalidades dele. |
O filme é carregado nas costas pela atuação colossal do James McAvoy, que interpreta o rapaz com esse transtorno de personalidade múltipla, chamado Kevin Wendell Crumb. Cada uma de suas personalidades é como um personagem completamente distinto, desde seus trejeitos até a maneira como falam. Sempre me dava uma certa ansiedade ao esperar pra ver qual das personalidades as meninas teriam de enfrentar sempre que ele entrava e saia da sala onde elas estavam trancadas, porque algumas são piores que as outras em relação às suas atitudes, como o Dennis, um homem estoico e agressivo com TOC de limpeza que gosta de ver adolescentes dançando nuas.
Esse é o Dennis. |
Algumas de suas personalidades chegam até a ser cômicas, como o Hedwig, um garoto de 9 anos que é facilmente manipulado, adora dançar ao som de Kanye West e tem a mania de adicionar "etcetera" ao fim das suas falas. Sério, na cena que uma das meninas consegue manipulá-lo a levá-la ao seu quarto e ele começa a dançar de forma insanamente bizarra, você fica sem saber se ri ou se fica apreensivo. Sinceramente não entendo como o James McAvoy não foi indicado ao Oscar de Melhor Ator por essa atuação.
Outro fator que carrega o suspense da obra é a famigerada 24ª personalidade, referida como A Besta. Ao longo do filme, as personalidades do Kevin se referem a ela como uma entidade superior aos humanos que trará purificação ao mundo ao se livrar dos impuros. Falam sobre o seu poder arrasador, sobre suas habilidades animais. A doutora que cuida do Kevin, especializada em transtornos assim, fala com tamanha certeza que é impossível uma personalidade dessas existir que eu fiquei com ela nessa. Porém, ao clímax do filme, a Besta se manifesta.
É aí que Fragmentado se torna um filme de terror, mas sem apelar aos clichês de jumpscare, sanguinolência e o caramba. É pura tensão. É como se uma verdadeira besta possuísse o corpo do Kevin, com suas veias visíveis ao ponto de parecer que explodirão e uma tintura vermelha em seu rosto como se todo o sangue estivesse concentrado ali. Ele esmaga a doutora que tanto o ajudava com seus próprios braços e mutila o corpo de duas das meninas como sacrifício com sua própria boca. Resta apenas uma das meninas para tentar escapar da Besta, e que sequência de tirar o fôlego a da fuga dela.
A direção de arte ajuda bastante a criar essa atmosfera de tensão que permeia todo o filme. Corredores velhos abandonados, salas pouco iluminadas abarrotadas de tralhas, uma correção de cor que opta por tons escuros de marrom, verde e laranja... Me senti imerso nessa tensão o tempo inteiro. O sound design também é importantíssimo em relação a isso e cumpre seu trabalho de forma indefectível, especialmente durante a parte da Besta com seus sons sinistros no horizonte.
O filme que une de fato os dois anteriores e forma uma trilogia foi lançado em 2019, chamado Vidro. Finalmente temos o encontro do David Dunn com o Kevin, agora referido sempre como "A Horda" por conta de suas múltiplas personalidade, e o encontro deste com o sr. Glass, o que resulta na união de dois vilões contra um super-herói. O embate entre o Dunn e a Besta era algo que eu aguardava com ansiedade, pois ambos são praticamente invencíveis, então queria ver quem venceria. Mas logo no início do filme, o desfecho do combate acaba por ser os dois presos e levados a uma clínica de reabilitação na qual se encontra o sr. Glass, onde se passa a maior parte do longa.
Nessa clínica eles são confrontados por uma doutora que tenta convencê-los de que suas habilidades são apenas ilusões de grandeza e que não são como personagens de HQs. Assim como o plot twist do final de Corpo Fechado, em Vidro ela acaba se mostrando a verdadeira vilã do filme nos minutos finais, que sabe da existência de super-heróis e quer mantê-los longe do conhecimento da sociedade. Spoiler: os três morrem no final, mas o plano dela falha porque o Sr. Glass é mais esperto e fez uma stream
Antes disso, os vilões sr. Glass e A Horda se unem para escapar da clínica e mostrar ao mundo o poder da Besta durante a inauguração de um enorme edifício. Mas para ser uma verdadeira batalha final de HQs entre o herói e os vilões, eles também soltam o Dunn. Contudo, nem tudo ocorre de acordo com seus planos, afinal, a vida real não é uma história em quadrinhos. A abordagem pé-no-chão do primeiro filme retorna em Vidro mais forte do que nunca, nos lembrando que essa é uma história de super-heróis com pessoas de verdade.
Algo que acho incrível é o carisma dos personagens dessa trilogia. Quando assisti Vidro no cinema, mesmo com todos sabendo das ações horrendas dos vilões, as pessoas ainda riam e se divertiam com algumas cenas d’A Horda e do sr. Glass. É impossível não rir das diversas personalidades do Kevin, especialmente do Hedwig e do especialista em filmes japoneses dos anos 50 aos anos 80 (que só aparece em uma cena :v).
Porém, Vidro falha em ser envolvente como os filmes anteriores da trilogia. Não existe aquela pegada mais pessoal do primeiro e nem aquele suspense inquietante do segundo. É um longa que não me deixou entediado, mas que também não me fez sentir nada enquanto assistia, diferente dos outros dois que me proporcionaram diversas emoções. Fiquei com aquela expressão de "hm, legal" durante a obra inteira. Nada me surpreendeu, nada me empolgou, nada me entristeceu. Nada.
Um detalhe que me incomodou foi como o personagem do Bruce Willis é mal aproveitado. Depois que é levado à clínica, ele mal aparece até chegar o clímax. Sério, acho que ele fica uns 25 minutos inteiros sem aparecer lá pela metade do filme. Suas cenas no início são ótimas, mas depois ele é praticamente esquecido. O sr. Glass também só começa a participar do filme pra valer depois de 1h de duração. Acho que o único personagem que fizeram uso de todo o seu potencial foi A Horda mesmo, novamente ajudado pela atuação fantástica do James McAvoy.
Em relação aos aspectos técnicos, Vidro se assemelha muito mais ao Fragmentado do que ao Corpo Fechado, fazendo uso do mesmo estilo de direção, trilha sonora, sound design, etc. Porém, aquela atmosfera pesada de tensão simplesmente não existe nesse filme. As instalações da clínica não passam aquela sensação desconcertante dos aposentos do Kevin do filme anterior. Nem mesmo os efeitos sonoros nas cenas de suspense conseguem trazer de fato um suspense.
Ao menos o final de Vidro traz uma mensagem bonita. Por mais que o sr. Glass fosse um vilão, seu plano final era o de mostrar à população a existência de super-heróis para que novos deles surgissem, porque as pessoas começariam a questionar se suas habilidades são dignas de um. Em nossa vida real, é um paralelo à possibilidade de pessoas se inspirarem nas ações de outras, como quando você assiste um pianista virtuoso tocar e quer ser igual a ele, ou quando vê a história de superação de um mochileiro que viajou por diversos países com poucos recursos e se sente inspirado em fazer o mesmo.
Mas Vidro não é um filme ruim, apenas não é tão bom quanto os anteriores. Essa é uma trilogia fantástica para quem quer histórias únicas de vilões e super-heróis, diferente de quaisquer outras no cinema. Histórias de HQ realistas, por mais paradoxal que isso pareça. Quase uma desconstrução do gênero. Também é um prato cheio para quem curte suspense e personagens loucos de pedra, etcetera.
Esse podia ser o final do review, mas faltou dizer que a melhor coisa da trilogia são os cameos do diretor Shyamalan em todos os filmes. Quem diria que o drogadinho do Corpo Fechado que o Dunn revista no estádio se tornaria um segurança particular em Fragmentado e se lembraria dessa experiência ao reencontrar o Dunn em Vidro? Isso que eu chamo de desenvolvimento de personagem!
-por Vinicius "vini64" Pires