sábado, 20 de outubro de 2018

DISSECANDO CENAS - O filler perfeito (Kyoukai no Kanata, Ep. 6)


Tá aí uma palavra que nos deparamos com frequência em discussões de séries ou animes: filler. Usada majoritariamente com conotações negativas, o que exatamente é um filler? Sua tradução literal é "enchimento" e suas origens se dão de diversas mídias, como música, computação e transmissões televisivas, mas o tipo de filler que quero tratar especificamente nesse texto é o de séries de TV e animes.

Existem dois significados à palavra. O primeiro, considerado sua origem, se refere aos episódios ou eventos inseridos em uma adaptação de um livro ou mangá que não se encontram na obra original, como quando incluem lutas ausentes no mangá em um anime shounen. Alguns fãs levam à risca essa definição como a única válida.

O segundo significado considera filler todos os eventos ou episódios dispensáveis que não agregam nada à história da obra, os quais você pode até pular porque não fará diferença alguma no desenrolar da narrativa, algo extremamente comum de se encontrar nesses shounens com mais de 100 episódios tipo Dragon Ball, Bleach e Naruto. O episódio tópico dessa análise se encaixa nessa definição.


Esse mês comecei a assistir Kyoukai no Kanata, anime de 2013 da Kyoto Animation, estúdio o qual eu sempre escrevo aqui. A obra é uma das mais tematicamente distintas deles, pois é repleta de ação e fantasia, conta a história de uma associação que combate monstros do além e a protagonista consegue manipular seu sangue e transformá-lo numa espada gigante. Já dá pra perceber que não é o slice of life comum da KyoAni, apesar de contar com diversos momentos típicos de animes do gênero.


A protagonista também faz jus à bandeira moe que o estúdio passou a carregar desde K-ON! (meu review).

O enredo estava se desenrolando bem, até chegar ao sexto episódio. Nele, o andamento da história cessa por completo. Por que? Porque a KyoAni queria nos prestigiar com uma nova dança viciante e cativante, só por isso. Mas é algo ruim? Muito pelo contrário. Esse episódio sucede em todos os campos que considero necessários para proporcionar um filler perfeito.

Eu acho que se o estúdio quer fazer um filler, eles devem privá-lo de qualquer ligação com a história. Sem essa de um episódio metade história, metade filler – o episódio precisa ser avulso, de forma com que você possa pulá-lo se não estiver afim de assisti-lo. Outro requirimento é fazer com que esse episódio proporcione uma experiência diferente daquilo que encontramos nos episódios comuns, como mostrar um lado da vida dos personagens que não estamos habituados a ver ou mostrá-los em situações que jamais se encaixariam nos episódios normais.

Quando o episódio 6 de Kyoukai no Kanata se inicia com o mascote fofo da Mitsuki dançando e com as meninas tomando banho, já dá pra perceber que esse não é um episódio comum. Na pior das hipóteses, pode ser o episódio de fanservice. Dada a premissa dele, taxá-lo como tal não estaria errado, pois seu enredo gira em torno de um monstro que se excita com garotas atraentes.

Enquanto Mitsuki se banha...

...o bicho dança.

No papel isso soa terrível, pelo menos pra mim, mas tudo depende da execução. Apesar do histórico da KyoAni de exagerar no fanservice em determinadas séries, aqui isso não acontece. O máximo que temos são planos pouco reveladores das meninas se banhando e a Mirai fazendo poses sensuais ao monstro pervertido. A premissa é de um episódio de fanservice, mas a execução faz com que não se torne um. +150 XP ao episódio.

Com uma pose dessas...

...fica fácil de entender essa reação do bicho.

Eu acredito que fillers funcionam melhor quando são divertidos. O pessoal da KyoAni provavelmente compartilha da mesma opinião, pois fizeram desse episódio um dos mais engraçados de qualquer trabalho deles, a começar pelo monstro que os personagens precisam derrotar. Eu falei sobre fillers precisarem contar com algo que não pode existir nos episódios comuns e esse monstro se enquadra perfeitamente nisso.

Não bastasse sua afeição por garotas do ensino médio, seu mecanismo de defesa ao ser atacado é explodir e expelir um líquido que faz com que os personagens fiquem com cheiro de caminhão de lixo. Além disso, o seu design contrasta com os demais monstros do anime que são todos ameaçadores, enquanto esse é um olho flutuante com um corpo roxo cheio de bolinhas rosas, algumas raízes de plantas em suas partes inferiores e superiores e um cabelo composto por laranjas, sem contar a expressão de bobo alegre que seu olhar transmite.

Em um momento ele é até mostrado fascinado por uma borboleta. Esse bicho é uma piada.

Grande parte do humor do episódio se dá em decorrência dessa habilidade do monstro de fazer os personagem federem a lixo. Isso pode parecer infantil, mas novamente, a execução está aí para salvar tudo. Kyoukai no Kanata tem diversos trechos de comédia espalhados ao longo de seus episódios, mas nesse aqui tudo é mais dramático e exagerado, quase no estilo de um filme comédia pastelão.

Quase todas as reações dramáticas dos personagens são acompanhadas daqueles efeitos visuais tracejados de impacto em volta deles, realçadas por efeitos sonoros que dramatizam ainda mais o peso. Em algumas ocasiões é feito o uso de frames congelados com cores mais saturadas e contrastadas e traços mais delineados a fim de amplificar o exagero. O melhor exemplo disso é quando a Mirai e o Akihito, após terem lutado contra o monstro, passam perto de um cachorro latindo e a imagem congela nele dessa forma, aí corta para uma paisagem e apenas o som distante e ecoado do animal latindo em agonia após ter sentido o fedor desses dois.

O momento que ele se arrependeu de todas as ações de sua vida.

A cena que melhor abusa de todos esses artifícios de drama e exagero é a que todos os personagens estão tomando banho. A Mirai dá um chilique por não aguentar mais esse fedor nojento e pede para a Mitsuki se afastar dela porque é a mais fedida de todas. Quase se inicia um conflito entre as duas, até que o Hiroomi e o Akihito decidem dar um discurso poético, insanamente clichê com direito a uma musiquinha inspiradora de fundo. As meninas se emocionam e todos ficam motivados a derrotar o monstro de uma vez por todas. É um negócio tão descaradamente brega que fica engraçado pra cacete.



Outro detalhe genial do episódio são as incongruências claramente propositais do roteiro, deixadas explícitas pelos dialogos dos personagens para que as notemos. É dito que o monstro só se interessa por garotas humanas, mas a que o deixa mais excitado de todas ao fim do episódio é a Ai Shindou, uma yomu. Sim, ela tem a forma de uma humana, mas a garota deixa explícito em um diálogo que o monstro só é atraído por garotas humanas genuínas.

Com tamanha fofura...


...o monstro despiroca de vez.

A Mitsuki é acertada por um líquido diferente que faria o monstro ativar sempre que ela estivesse por perto, mas isso nunca acontece quando os dois voltam a se encontrar. Além disso, esse líquido a deixa com o cheiro mais insuportável de todos, ao ponto do Hiroomi vomitar ao vê-la desprotegido enquanto todos os outros usavam máscara ao seu redor, e só será removido se o monstro for derrotado. A graça é que gradativamente seus amigos passam a usar menos proteções perto dela, quase como se o seu fedor sumisse aos poucos, contradizendo o que foi dito anteriormente.

Primeiro eles usam uma máscara à presença da Mitsuki.

Depois a colocam em uma bola de plástico.

Em seguida ela faz uma gaiola espiritual para conter o cheiro.

Depois parece que simplesmente esquecem o fedor e não há qualquer proteção.

A Mirai não sabe cantar. Em sua primeira tentativa de interpretar uma canção para chamar a atenção do monstro, a garota nos ensurdece com um canto desafinado que faz o seu inimigo explodir instantaneamente. Contudo, depois de uma semana, ela milagrosamente canta igual um anjo e captura todos os nossos corações – literalmente, em meu caso, por razões que explicarei em seguida.




Mas antes, gostaria de falar de dois detalhes daqueles preciosismos característicos da KyoAni. O primeiro se dá aos 9:54 quando o Akihito puxa assunto com a Ai e ela reage de tal forma que não imagino qualquer outro estúdio fazendo igual em um diálogo tão trivial. Ao invés de simplesmente virar o rosto ao Akihito, ela meio que se assusta no momento que ele começa a falar, depois sorri e olha em sua direção. É algo tão irrisório, mas que torna a interação mais genuína e aumenta o carisma da personagem.

Não tem som no gif, mas ela faz um "oh!" no momento que se assusta.

O segundo detalhe é um cuidado minucioso na sonorização aos 16:42, quando a Mirai começa a dar chiliques e a Mitsuki entra em quadro dentro do box onde tomava banho. É possível ouvir seus passos corridos se aproximando da porta do box, com um barulho dela batendo na porta assim que chega à frente. Isso nos proporciona uma sensação de distância e de qual o tamanho do box, porque revela que a garota estava longe da porta e teve que se aproximar dela para conversar com a Mirai. É um detalhe que agrega realismo e peso à cena, pois conseguem transmitir o desespero da Mitsuki só com o som de seus passos intensos e a força com que bate na porta.

A cena em questão é a mesma que disponibilizei no 13º parágrafo.

Enfim chegamos ao momento principal do episódio, o motivo pelo qual ele existe. Depois de tantas absurdidades, tudo culmina na única forma de se derrotar o monstro – uma dança estilo idols japonesas para desativar seu mecanismo de defesa. Senhores, essa é uma das danças mais viciantes que já assisti na vida. No dia que assisti esse episódio, reassisti essa cena durante quase duas horas, isso que já era de madrugada! Esqueçam as danças de encerramento de Haruhi Suzumiya (meu review) e de abertura de Lucky Star (meu review) – essa aqui é a melhor que a KyoAni já produziu!



Além de ser exorbitantemente cativante, o feitio técnico da dança é incrível. Nessa época, animes de idols como Love Live! e The Idolmaster estavam na moda e faziam uso de computação gráfica nas cenas de dança, tanto nos cenários quanto nas personagens. Em Kyoukai na Kanata, apenas o cenário é CG, pois os personagens foram animados tradicionalmente! Isso torna ainda mais delicioso ver toda a fluidez de seus movimentos.

E o estúdio não poupou na vestimenta deles para simplificar as coisas. Muito pelo contrário, eles só complicaram! Todos os personagens usam roupas extravagantes com elementos que precisam ser animados separadamente, em especial o Akihito com sua jaquetinha e o Hiroomi com o seu cachecol que certamente é o mais complicado de todos. Mas isso só agrega ainda mais ao mérito da KyoAni. Eles não mediram esforços para entregar aos seus fãs um trabalho digno de ser assistido mais de 100 vezes que, em cada uma dessas vezes, você encontra novos detalhes na animação.



Por falar no Hiroomi, eu diria que ele é a estrela dessa dança, apesar de ficar posicionado atrás das meninas. Seus movimentos são fabulosos! Parece que ele nasceu para ser um idol. Sua irmã Mitsuki também tem um talento natural para isso. Aquele movimento que faz com a mão e a cabeça logo no início é um negócio satisfatório de se ver. Mas a Mirai e o Akihito também mandam ver no gingado, e não é difícil de entender porque o monstro fica desnorteado com aquela piscadinha da garota.

Olha os movimentos desse Hiroomi, cara! Ele manda muito.

"Ai, ai, ai, assim você mata o papai..."

E quando a Ai entra em cena, transbordando fluidez e expressividade da forma mais moe possível, o monstro tem uma overdose.

E como uma boa paródia de animes de idols, diversas inserções de imagens que mostram os personagens treinando duro foram espalhadas ao longo da dança. Essas são hilariamente cafonas, com as situações mais clichês que você imagina acompanhadas dos cenários mais batidos possíveis, como uma praia banhada ao pôr-do-sol ou um dia chuvoso. A maioria das imagens dotam aquela estética de traços delineados com cores fortes para amplificar a dramaticidade do árduo treinamento.

O início do treino...

A invasão dos pervertidos...

A corrida na praia...

Cansaço...

Suor...

Água...

Muita água...

Mas a cafonice atinge o seu ápice quando a dança se aproxima de seu fim, com inserções que mostram momentos de conflito entre os personagens, obviamente situados na chuva para maior impacto, mas tudo se resolve rapidamente e todos sorriem e se abraçam, seguido por uma imagem deles em um horizonte estrelado observando a passagem de uma estrela cadente. É assim que se faz uma paródia exagerada capaz de te arrancar muitas risadas, galera. Tomem nota.

Está tudo perdido...

Como você é fraca...

Foi você quem estragou tudo!

Mas nós somos amigos...

Vai dar tudo certo!

Nossos desejos se realizarão!

A dança se tornou tão icônica que o estúdio até produziu uma versão separada da coreografia completa sem diálogos e inserções de imagens como bônus do blu-ray do filme recap da série. Essa é a versão definitiva para se assistir inúmeras vezes – assim como eu fiz e continuo fazendo – e para aprender todos os movimentos da dança. Eu posso ser duro como uma pedra, mas essa música me deixa com vontade de me requebrar inteirinho. Nessas duas últimas semanas, não paro de escutá-la, onde quer que eu esteja.



Quem diria que o melhor episódio de Kyoukai no Kanata seria justamente um filler. Não só isso: também é um dos melhores episódios de qualquer trabalho da Kyoto Animation. Ele pode não ter o impacto emocional de muitos de seus episódios consagrados, mas tem o impacto de te querer fazer dançar igual um idol. É um ramo que dá muita grana. Bora tentar?



-por Vinicius "vini64" Pires

Leia também minhas análises completas sobre animes da Kyoto Animation:
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

daijonwachob disse...

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